Sobre a pureza e o respeito na docência: Cecília Meireles, nos anos 1930.

Cecília Meireles escreveu muito sobre educação. Entre 1930 e 1941, ela publicou mais de 350 crônicas, hoje reunidas em livros, organizados por Leodegário de Azevedo Filho (Crônicas de Educação, Editora Global, 2017). São mais de 1.100 páginas de escritos sobre todo tipo de questão pedagógica.

Em uma dessas páginas ela escreveu, no distante ano de 1930, que uma condição essencial para o prestígio moral do professor é que ele tenha, diante de seus alunos, uma aparência de “pureza e respeito”. Essas expressões podem soar um tanto estranhas hoje, especialmente a primeira, “pureza”, mas também a segunda, “respeito”. Da primeira alguém diria que é ingênua; da segunda, que é apenas um artigo em falta generalizada na praça das relações humanas. Como eu gosto muito da Cecília, vou defendê-la aqui dessas críticas imaginárias.

Em que sentido um professor poderia ser “puro”? Pureza parece ser coisa de extremos, como cocaína e anjos. Como essa expressão poderia ser aplicada ao exercício de uma profissão como a do professor? Já a afirmação que o professor deve ter uma aparência de respeito é mais palatável. No entanto, o respeito hoje parece ser algo que se alimenta de uma exigência de reciprocidade simétrica, como se houvesse uma regra do tipo, “eu dou respeito na quantidade e na qualidade que me dão”. Assim, há quem diga que o professor deve ser amigo dos alunos. Nesse caso, seria um respeito simétrico, parecido com o de mesa de bar ou de jogo de futebol e esse tipo de respeito pouco tem a ver com a relação entre professor e aluno.

A frase dela é essa: “O professor que não aparece diante de seus alunos com uma auréola de pureza e respeito perenemente luminosa não deve ter a esperança de influir beneficamente no seu destino”.

A frase é inspiradora em cada detalhe. Em que poderia consistir a “pureza” do professor? Como pode haver um respeito assimétrico entre ele e os alunos? Finalmente, de que modo essa aparência resultaria em influências benéficas?

Eu não posso responder essas perguntas por ela, mas quero sugerir algumas direções de respostas. Em primeiro lugar, é notável que ela se refira ao “aparecimento” do professor na vida de uma criança. Antecipando algumas elaborações de Hannah Arendt, ela tematiza a diferença entre auto-apresentação e auto-exposição. Nossa auto-exposição, por assim dizer, é desligada de nossa vontade e escolha, pois nela exibimos as características que temos, por assim dizer, independentemente do que queremos. Já a minha auto-apresentação é uma questão de escolhas que eu faço sobre a imagem que quero mostrar ao mundo. Eu não posso mudar minha altura ou a cor dos meus olhos, mas se eu decido aparecer ao mundo como uma pessoa honesta, isso significa que faço uma promessa para mim mesmo, de agir sempre nesse sentido. Como diz Hannah Arendt, as virtudes humanas começam muito singelamente com o elogio que fazemos a elas. Depois da promessa-elogio, fazemos o melhor para cumpri-la. A hipocrisia, lembra ela, é a quebra dessa promessa.

E como devem apresentar-se os professores? Quais são as promessas que devem fazer? A “pureza” a que se refere Cecília tem muitos matizes. Creio que o principal deles é o da intenção pedagógica, que sempre deve ser temperada pela consideração das características do nível de ensino que estamos tendo em mente: criança, adolescente, adulto. Há casos, diz ela, nos quais “o professor tem a obrigação de lhe garantir a mais rigorosa neutralidade de atitudes, justamente para o livrar de imposições estranhas aos seus verdadeiros interesses.” Dizendo de uma forma muito direta: há casos nos quais “o professor quer pregar uma doutrina, quer obrigar os alunos a meterem na cabeça certas ideias.” É nessa direção, possivelmente, que ela está usando o conceito de “pureza”: ligado a situações que exigem “honestidade profissional”, ligado a situações que exigem “neutralidade política e religiosa da escola, oferecendo-lhe toda a sincera contribuição informativa, mas sem partido (…).” O itálico é meu.

É, de fato, possível o cultivo dessa auto-apresentação ligada à valores de neutralidade, isenção, respeito? Lembrando Rilke, ela diz: “Educar? Quem pode pensar em semelhante coisa? Quem existe, no mundo, capaz de missão de tal ordem?E, na verdade, o que fazemos são tentativas.” Cecília sabe bem, na companhia de Rilke, que educar é uma profissão impossível. É uma profissão que exige esforços e sacrifícios contínuos, onde a auto-apresentação está ligada a valores muito exigentes de honestidade profissional. Ela vai a detalhes:  

“... direi que a dificuldade maior de ser professor é quando os alunos já são gente crescida, que leu umas coisas e pensou um bocado.  Nessas condições, dar uma aula é precisamente o mesmo que fazer um exame.  E que exame! menos generosos, talvez, que as crianças, nesse particular, os jovens sabem analisar todos os defeitos do professor, com uma nitidez tão rigorosa que às vezes chegam a deixar passar desapercebida alguma qualidade que, também, por acaso, possuam.

Nada escapa: a voz, o gesto, a linguagem, a intenção, as contradições, os lapsos, a banalidade, os erros, etc.

Dessas coisas, porém, uma parece que atrai de preferência a curiosidade dos estudantes: a intenção. Diante de um professor que vai dar uma aula, os jovens que se dispõem a ouvi-la parece que preliminarmente se propõem esta pergunta: “Que será que este cavalheiro pretende fazer de nós?” Há, provavelmente, uma certa desconfiança. Uma certa cisma de que o professor quer pregar uma doutrina, quer obrigar os alunos a meterem na cabeça certas ideias.  E parece que há também uma prevenção inicial, de defesa.”

Veja que ela não apenas ilustra claramente o conceito de respeito assimétrico – o reconhecimento do direito do professor de “dar aula” – mas também o mecanismo da transferência, a cisma, a desconfiança, no caso. Ela pisa em território freudiano. Basta lembrar aqui a famosa passagem em que Freud (nas observações de 1915 sobre amor transferencial) recomenda ao analista a atitude de “distanciamento” (ou “neutralidade):

Visto exigirmos estrita sinceridade de nossos pacientes, colocamos em perigo toda a nossa autoridade, se nos deixarmos ser por eles apanhados em um desvio da verdade. Além disso, a experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos ternos em relação à paciente não é inteiramente sem perigo. Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência.”

Sejam sentimentos de ternura ou de ódio, eles são sempre arriscados e não podem ser deixados à solta. Eu não sei o que Cecilia Meireles pensava sobre Freud e a psicanálise, mas sou levado a pensar que há muito mais nela e nele que deveria ser de nosso interesse, nós que estamos meio perdidos nesse grande sertão pedagógico.

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