O menino que via no escuro

Era uma vez um menino que não tinha medo do escuro.

Os meninos e as meninas têm um medinho do escuro. Até gente grande tem medo do escuro. O menino dessa história, no entanto, não tinha nem medinho do escuro. De noite, se era precisava buscar um brinquedo esquecido no pátio, ele pegava a lanterninha e ia. Todos diziam que ele era um menino valente, pois andava no escuro com a lanterninha.

O menino foi crescendo sem medo do escuro.

Um dia seus pais acharam que era hora de levar o menino ao cinema. O filme contava a história de um menino que morava em uma casa muito grande, tão grande que um dia ele perdeu-se dentro dela e foi parar, misteriosamente, em uma outra casa ainda maior e ali passou muito trabalho, mas com a ajuda de um novo amigo que fez ali ele conseguiu voltar para sua casa de verdade. Quando os pais perguntaram se ele tinha gostado do filme, fez que sim com a cabeça.

Depois daquele dia o menino ficou mais quieto do que costumava ficar. A mãe dele reparou nisso no outro dia, ou melhor, na outra noite. Ele teve que buscar a bola no pátio e foi lá sem levar a lanterna. Depois, na hora de dormir, ele não deixou a lanterna ao lado da cama.

Sua mãe percebeu que ele, com o passar dos dias, quando estava quieto, ficava mais quieto do que de costume e  quando ficava agitado, ficava mais agitado do que costumava.

O que estava acontecendo com ele? Ele dizia que era nada, nada.

Até que um dia, depois de muita insistência, ele desabafou.

“É o escuro”.

A mãe perguntou de volta, com uma voz muito suave:

“O escuro? Mas não tens medo do escuro, agora vais no pátio, à noite, sem a lanterninha!”

Ele então disse uma coisa que deixou sua mãe muito intrigada. “Justamente. Não existe mais o escuro.”

A mãe estava picando umas couves para o jantar. Ela deixou a faca e as couves de lado ela era só ouvidos. “Fala mais, filho, me explica isso, que o escuro não existe mais!”.

“Mãe, quando eu fecho os olhos, eu continuo vendo as coisas”.

“Como assim? Se tu fechares os olhos, vais ver se eu estou picando as couves ou se eu parei?”.

“Não, não é isso. Se eu fechar os olhos sei que não vou ver a maninha sentada perto do fogão, nem o papai trabalhando no computador, nem tu picando as couves. Não é isso que eu quero dizer. Eu quero dizer que eu continuo vendo coisas, não adianta fechar os olhos, a gente continua vendo coisas, outras coisas. Não existe mais o escuro. Não adianta fechar os olhos, eu continuo vendo. De noite, quando eu durmo, eu sonho e continuo vendo coisas, e de dia, se eu fecho os olhos, não fica escuro, continuo vendo coisas. Eu achava que quando a gente fechasse os olhos a gente não via mais nada. Mas tem um monte de coisas que a gente vê de olhos fechados.”

A mãe tranquilizou o menino, dizendo que isso não era nada demais, “É só a imaginação da gente!”.

O menino não pareceu satisfeito. “Ainda mais que quando eu fecho os olhos, às vezes aparecem umas coisas que eu não gosto de ver. Parece que a gente não manda mais naquilo que vê”.

Agora ela era ainda mais ouvidos: “Como o quê, me conta.”

“São coisas ruins, montes delas, eu fico perdido, eu caio em um buraco, essas coisas. Eu só sei que eu queria que quando eu fechasse os olhos tudo ficasse escuro mesmo.”

“E desde quando isso está acontecendo contigo?”, perguntou a mãe.

“Não sei. Acho que foi depois da história sobre o menino que se perdeu e levou muito tempo para voltar para casa. Eu fico pensando nessas coisas que a gente pensa quando está de olho fechado.”

A mãe achou que era hora de voltar para as couves. Ela viu que nem era preciso tentar acalmar o menino. Ele já estava mais calmo só de falar. Ela ficou certa disso porque ele seguiu: “Eu só queria te dizer isso, o escuro não é bem escuro, é uma coisa grande, com muitas coisas dentro dele. Eu acho que o escuro é uma coisa muito estranha. O escuro funciona de um jeito muito esquisito.”

A mãe tinha terminado de refogar as couves. Ela pediu que ele ajudasse a arrumar a mesa e chamou todos para o jantar. As couves luziram no prato, fumegantes, e o escuro ficou quieto, no lado de fora da casa.

2 respostas em “O menino que via no escuro

  1. Eu não sei “o que foi isso” mas tenho que confessar que, naturalmente, adorei. Espero que venha mais “disso” por aí.

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