Uma conversa com Emanuel

Augusto Aras, o procurador-mor, foi ontem ao STF, contestar trechos da resolução que ampliou os poderes do TSE para enfrentar a desinformação na campanha. Ele diz que alguns artigos da peça do TSE violam princípios constitucionais, como a liberdade de expressão, e incluem alguma forma de censura. A arenga dele diz que o remédio para a desinformação é mais informação, e não censura. E que na democracia “a palavra é o poder do cidadão.”

Edson Fachin, pelo STF indeferiu hoje a arenga de Aras. Ele entende que a liberdade de expressão não pode ser usada para a erosão da coisa toda da eleição. Não se trataria de censura prévia, ele diz. E mandou o causo para discussão posterior, sem urgência.

Perguntei para o Emanuel o que ele acha do imbróglio. Ele disse que podia, no máximo, arriscar uma opinião. “Pois que dar uma opinião, todo mundo sabe disso, é considerar que algo é verdadeiro, mas nesses casos a gente sabe que não tem provas, apenas acha, por fumaças, que a coisa é verdadeira. Acreditar em algo já é algo mais. Quando a gente acredita em algo estamos, por assim dizer convencidos por dentro, sem poder provar por fora, com evidências. E aí, Emanuel acrescentou, vem a coisa de saber algo. Quando a gente sabe algo, não apenas acreditamos, mas temos alguma evidência que podemos mostrar aos outros viventes.”

“O Fachin”, disse o Emanuel, “não me parece estar falando dessas coisas. As tais de redes sociais têm uma relação fraca com opiniões, crenças e saberes. As tais de redes são um campo de batalha de memes”, Emanuel insistiu. “Isso não tem nada a ver com liberdade de expressão!

“Falar em liberdade de expressão e censura no caso específico de uma disputa eleitoral como essas de hoje em dia é jogar areia nos olhos de quem já está torto da vista, esse vocabulário é pré-internético.”

Bem que eu quis seguir a conversa, mas estava na hora dele se retirar para o descanso diário, ele tem dessas coisas.

No dia dos professores, nessa primavera de 2022

Há tanta coisa que pode ser chamada de “educação” que deveríamos desconfiar que as definições dela são sempre e apenas tentativas de mapeamento de uma vasta região de atividades, situações e condições. Veja essa lista: assistência, cultivo, conservação, criação, desenvolvimento, disciplinamento, estudo, escolaridade, formação, inibição, instrução, informação, orientação, prática, proibição, repressão, reprodução, transmissão, trato, treinamento. Cada uma dessas palavras indica algum aspecto de “educação”, em sentido forte ou fraco, feliz ou infeliz, desejável ou não. A gente devia pensar “educação”, portanto,  como uma espécie de guarda-chuvas, que abriga dezenas de conceitos de menor alcance.

Quando acrescentamos a essa condição semântica alguns elementos de história (econômica, social, cultural etc.), fica fácil ver por que a tarefa de definir “educação” não é apenas difícil, é mesmo interminável.

É tentador lembrar aqui a observação de Freud sobre as profissões impossíveis: analisar, educar, governar. Numa das ocasiões em que abordou o tema, ele acrescentou que o objetivo da educação é “orientar e assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de se extraviarem” (Freud, XIV, 341).  É evidente que Freud pensou a “impossibilidade” da educação em um sentido fraco ou figurado. É como se ele dissesse que as atividades que visam proporcionar autonomia aos seres humanos não podem prever ou garantir a realização desses objetivos. Essas ações  – analisar, educar, governar – não estão baseadas em um conhecimento exaustivo de seus objetos, pois eles se renovam constantemente e são fontes de novas ações, igualmente conscientes. Não é possível educar (ou analisar) com base em um saber prévio e completo sobre o ser da criança e sobre o que é educar. Não dispomos dessas coisas, e a própria criança é uma fonte constante de indeterminações e novidades. As práticas que visam a autonomia dos seres humanos têm essa “impossibilidade” de exaurir ou determinar completamente seus objetos.

Outra razão para as dificuldades da educação foi antecipada por Rousseau. Ele viu que educar, no seu sentido amplo e no sentido escolar, é uma atividade informada pelo saber disponível pelos educadores, mas também é um processo de intencionalidade difusa. As intenções que cercam a criança quase nunca são harmônicas e convergentes e há mais do que essas intenções em torno dela. Como disse Rousseau, cada um de nós é objeto de, pelo menos, três educações: somos educados pelos seres humanos que nos cercam, pelas coisas e pela natureza. Há mais sobre isso no meu Filosofia da Educação (Contexto, 2022).

A educação humana é uma atividade, mas é também um processo, híbrido, tenso, aberto. Nas situações educacionais rolam ações e intenções humanas, mas há também eventos e processos sobre os quais não temos controle. Os mestres estão por toda a parte e usam disfarces. Uma boa educação, sugere Rousseau, é aquela na qual conseguimos equilibrar as lições que recebemos dos outros, das coisas e da natureza. Sempre que um desses mestres predomina sobre os demais, estamos em risco. E chega um momento em que a educação da criança é também autoeducação. 

Como podemos nos orientar diante dessas complexidades? Em uma situação semelhante, Freud recorreu não apenas à psicanálise, mas também à intuição linguística. Diante de temas vastos, que pertencem ao conhecimento comum, devemos, diz ele, confiar em nossos hábitos linguísticos.  (Freud, XXI, 109) Através de uma combinação entre os achados de sua teoria e algumas boas intuições, ele sugeriu que o campo semântico da educação tem uma unidade primitiva e importante. A tarefa primeira da educação, diz ele, é assistir a criança no controle de seus impulsos. Na tradução brasileira: “Vamos tornar claro para nós mesmos qual a tarefa primeira da educação. A criança deve aprender a controlar seus instintos. É impossível conceder-lhe liberdade de pôr em prática todos os seus impulsos sem restrição. (…) Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir, e isto ela procurou fazer em todos os períodos da história.” (Freud, XXII, 182)

Há uma arte exigente nisso. O educador está diante de problemas difíceis. O primeiro é o conhecimento do que é uma criança. O educador, diz Freud, precisa aprender o que é uma criança, qual é sua constituição. Em segundo lugar, diante dele está sempre uma criança particular, e ele deve descobrir, a partir de pequenos indícios, o que se passa na mente dela. Somente assim o educador será capaz de dar conta do terceiro e do quarto desafio: dar à criança a quantidade correta de amor e manter sua autoridade de cuidador.

Na visão freudiana, a arte pedagógica consiste em nossa habilidade para traçar um caminho “entre o Cila da não interferência e o Caríbdis da frustração.” (Freud, XXII, 182). Temos que descobrir o “ponto ótimo” para nossas ações, que reside em obter o máximo com o mínimo de danos, pois há uma questão central, incontornável: o processo educativo implica, em alguma medida, em inibir, proibir e suprimir aquelas condutas que, balizadas pelo princípio do prazer, impedem o avanço para o princípio da realidade. A criança precisa chegar a ser um adulto, e assim Freud insiste que há apenas uma educação, a educação para a realidade. A questão de proibir a criança é apenas uma questão de quando, onde e como.

É conhecimento comum, portanto, que educação rima com frustração. É preciso acrescentar mais coisas, no entanto, em espírito freudiano. A primeira delas é que todas as crianças têm uma humanidade em comum, mas cada uma tem uma disposição constitucional própria. Isso exige de nós não apenas paciência e arte, mas também comedimento em relação aos métodos pedagógicos. A diversidade humana faz com que seja bom que existam muitos métodos pedagógicos, e apenas uns poucos princípios gerais para todos eles.

Lembrei acima que Freud sugeriu quatro orientações pedagógicas fundamentais: reconhecer a individualidade constitucional da criança; inferir, a partir de pequenos indícios, o que está se passando na mente dela; dar-lhe a quantidade exata de amor e manter um grau eficaz de autoridade.

Pois é de amor que se trata, no final das contas. O amor, bem compreendido, é a grande baliza da realidade e o grande princípio da educação. O amor, diz Freud, é o grande educador: “Lado a lado com as exigências da vida, o amor é o grande educador, e é pelo amor daqueles que se encontram mais próximos dele que o ser humano incompleto é induzido a respeitar os ditames da necessidade e a poupar-se do castigo que sobrevém a qualquer infração dos mesmos.” (Freud, XIV, 352)

O nó da educação consiste, no conhecimento comum de Freud, na inevitabilidade da navegação entre o Cila da não interferência e o Caribdis da frustração. O amor é o princípio, e o compasso é uma ideia central na tradição freudiana: que o educador, deve ser, ele próprio, analisado. É difícil fazer para os outros o que não fazemos para nós mesmos. Com essa atitude em mente, o desafio de educar segue sendo terrível e maravilhoso, mas conseguimos conviver melhor com as incertezas e as impossibilidades da educação e de seu conceito.

Bibliografia

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIV.

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIX.

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976.Vol. XXI.

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XXII.

Segue o café com o Vitor

Passei cinco ou seis manhãs no Arquivo Municipal, procurando uma informação para um parágrafo que estou escrevendo. Furunguei A Razão de 1967, 1969 e 1970 e hoje achei o que eu queria. Também achei muita coisa que não estava procurando, mas que me atraiu a atenção. Também, pudera. 1970 foi o ano em que entrei para a Faculdade de Filosofia, que naquele tempo abrangia muitos cursos, desde a Pedagogia até a Matemática e a Física. Eu “tirava”, como se dizia na época, a “Filosofia Pura”. No ano em que entrei, o paraninfo convidado foi o Médici, que, no final das contas, não compareceu. No ano em que saí, o paraninfo convidado foi Armindo Trevisan. Para alegria da “Filosofia Pura”, a ideia foi da minha turma. O que eu concluí desses dias, depois de lembrar tanta coisa, é que o passado é uma coisa que parece estar sempre na frente da gente e quase sempre tem umas coisas turvas no meio.

Um café com V.

Na sexta à tardinha fui tomar um café com V. Um dos temas da conversa foi a dificuldade de compreender a viabilização do atual presidente. A pergunta é mais ou menos essa: como um deputado federal que se apresenta como integrante do baixo clero, chega à presidência, como mantém um apoio que não baixa de um quarto do eleitorado, na medida em que diz claramente ser a favor de coisas como a ditadura militar, é homofóbico, duvida das urnas que o elegeram etc? Bebemos café e seguimos sem achados relevantes. Nos separamos, prometendo voltar ao tema.

Vou arriscar, da próxima vez, isso: a coisa toda é, certamente, multifatorial, mas tem algo a ser anotado. Ele vendeu-se e foi vendido como vencido: foi vencido pela caserna, que o mandou para casa, era vencido pelos deputados de esquerda, que o menosprezavam, era vencido pela atmosfera cultural que rebaixava temas como a família e quetais. Tem mais: que suas mãos estavam vazias. A imagem de mãos limpas e vazias é usada na política, pela direita e pela esquerda. No caso brasileiro, havia o contraste com mãos e malas cheias de dinheiro, no outro lado.

Sim, vai me retrucar o amigo, dá para explorar esse tema do “grupo vencido” que ganha uma voz, mas será que isso explica os vinte e cinco por cento que persistem até hoje? Seria tão grande esse amargor enterrado, sem voz? A ver, pois, como vemos, “a luta continua”, como se dizia na Itália do Duce. Não sei. Vai ser preciso café para pensar sobre um fato que me parece decisivo para entender isso: já quase não há mais política. Sempre houve pouca, mas hoje, mais do que nunca, fica evidente que a política tem um lado de psicopolítica cada vez mais importante, Nos momentos eleitorais isso fica evidente, a política se transforma, toda ela, em psicopolítica.

Alguns pensadores de esquerda ajudaram aqui. A dimensão psicológica da “conscientização” foi esvaziada por eles, em benefício da dimensão social da mesma. Parece uma contradição, eu sei. Consciência não é sempre uma coisa meio psicológica? Sim, mas isso foi deixado de lado, faz algum tempo. Faz muito tempo que “conscientizar” alguém é mostrar para o infeliz o lado certo das coisas. Assim não dá, convenhamos.

Plínio Marcos em Santa Maria (1)

Plínio Marcos veio a Santa Maria (RS) em dezembro de 1976 para paraninfar os formandos do Curso de Comunicação Social (Jornalismo, Publicidade e Propaganda) da UFSM. Fátima Torri, uma das formandas, conta que fez parte do grupo que o trouxe de carro para Santa Maria, desde o Aeroporto, em Porto Alegre. Eu contei a ela que tinha uma transcrição do discurso do Plínio e ela me pediu uma cópia. Como é um texto muito longo para uma postagem de Facebook, coloco por aqui.

A história de como cheguei ao discurso é uma outra e longa história. Eu tenho também o discurso do Severino Goes e uma longa entrevista que o Plínio Marcos deu ao “Sabe Tudo”, um programa de rádio conduzido pelo radialista Arnaldo Souza. Plínio voltou a Santa Maria, em 1980, a convite do DADECA, para um debate sobre cultura popular e para apresentar sua peça, “Oração para um pé de chinelo”.

Eis, então, o discurso de Plínio Marcos, que transcrevi sem mudar nada importante no material original. Em outro momento vou postar o discurso do Severino. Há uma ou outra frase cujo sentido parece estranho, mas isso não atrapalha o conjunto da obra. Não quis editar mais do que o que me pareceu estritamente óbvio.

Discurso de Plínio Marcos:

(Palmas…) Senhores, Autoridades Civis, Militares, respeitável público; meus queridos formandos desta noite. Eu quero dizer para vocês que tenho quarenta e um anos de idade e vinte e cinco de profissão. Nesses vinte e cinco anos de profissão, eu fui muitas vezes grande e pequeno. Ganhei todos os prêmios que um artista do teatro brasileiro pode ganhar, sou várias vezes internacional. Sou jornalista não reconhecido pelo Ministério do Trabalho, sou ator, uma profissão que não existe. Sou escritor, outra profissão que não existe. Essas profissões que não existem me deixam na categoria de marginal. Nunca, em todos esses anos de profissão, deixei de correr risco e, muitas vezes fiquei desempregado.

Quando recebi o convite para paraninfar essa turma eu estava trabalhando de camelô em São Paulo, vendendo meus livros porque não tinha emprego. O mercado de trabalho no Brasil estava fechado para mim, eu não podia exercer nenhuma das atividades que sei. Era proibido. Onde eu arrumava emprego, vinha uma ordem para me despedir. Eu fui convidado como camelô.  Mas estava defendendo meu taco, as minhas ideias e só não senti uma forte emoção, porque realmente eu fiquei apavorado, com o que eu lia.

Soube que tinha sido escolhido paraninfo desta turma por una carta anônima que chegou em São Paulo, que tinha um recorte de jornal, que dizia que um grupo de pessoas tinha deixado de participar desta formatura, porque não concordavam com minhas ideias. Isto considero una traição, porque não diziam quais eram essas ideias e nesses tempos que correm você dizer que não concorda com a idéia de um cidadão e não deixar claro quais são essas ideias dele, é realmente um ato covarde. Isto tinha sido publicado na imprensa aqui. Então eu tenho o direito de chegar aqui, direito que me dá os paraninfandos de explicar quais são as minhas ideias.

Eu quero dizer para os senhores que eu sou quem sou, porque nasci, onde nasci. Nasci na rua antiga laranjeiras, num macuco, no cais do porto de Santos. Uma rua de chão de terra firme por onde os operários, quando iam para o caís do porto, passavam assobiando doces cirandas da liberdade, Essas cirandas que eu carrego na alma. Lembro que assumi os meus compromissos na esquina deste velho quarteirão, me lembro bem, quando num dia, distante da infância, chegava na nossa rua a convocação para que três dos nossos, três meninos, que brincavam com a gente de balão, fossem para a guerra combater o nazismo, e naquela noite nos reunimos todos os moradores daquela rua, no fim da rua, num beco. Íamos comemorar e rezamos e choramos. Não pedimos para eles voltarem vivos, pedimos para voltarem mortos, mas nunca voltarem perdendo uma parada para o nazismo, que queria escravizar o mundo.

No dia seguinte todos nós ostentávamos com a nossa roupa, roupas de escola, de grupo, com um “vê” de vitória parado no peito, com uma bandeira brasileira na mão, nas portas de nossas casas, vendo os nossos três soldados passar. O Zé Batateiro, o garoto que chefiava sempre nossas brincadeiras, o Boi, um rapaz muito forte, e o Valtinho, que era ponta esquerda do Jabaquara. E eles foram para a guerra e nós abanávamos. Nesta noite, todos nós, todos nós daquela rua sonhamos que queríamos ser soldados para esmagar aquele nazismo. Cantamos para eles. Que não permitisse Deus que eles morressem sem voltarem para lá, mas tinham que voltar vitoriosos. Choramos e sonhamos que queríamos ser soldados e combater esse nazismo. Era esse o Exército do meu povo, era esse o Exército da minha rua, era esse o Exército Brasileiro. Todos nós gostaríamos de, naquele momento, vestir a farda oliva para combater o nazismo. Tempos depois nossos soldados voltaram vitoriosos.  O  Zé Batateiro, com neurose de guerra, o Boi, morto e o Valtinho, sem perna.

Estava assumido um compromisso do menino Plínio Marcos com a liberdade, compromisso que honro sempre. Eu coloco a minha alma livre onde quero e coloco sempre contra quem detenha o poder, contra quem não dá liberdade de expressão para o meu povo. Depois eu tinha que escolher una profissão, como todos na minha rua, a gente tinha de escolher uma profissão. A profissão que me coube foi a de palhaço de circo. Foi aí que eu entrei para esse ramo e nele eu fui me desenvolvendo e fui vendo que o meu povo, que tinha derrotado o nazismo em batalhas cruentas que lesaram os melhores da minha rua, estava sendo sacrificado, bitolado e esmagado por una coisa, que é realmente uma questão de segurança racional, mas que todos fecham os olhos. O mercado de comunicação brasileira está ocupado pela cultura de consumo importada, que invade os nossos lares, que subverte o nosso povo, que descarateriza o homem comum brasileiro, que desvincula ele da realidade, da cultura popular brasileira e que esmaga as manifestações espontâneas do nosso povo. E um povo que não ama, não preserva suas formas de expressão mais autenticas, jamais será um povo livre. (palmas…)

Eu, meu senhores, nunca fiz cerimônia com os poderosos, com os que detém o poder, esses que estão com os canais de TV e rádio nas mãos, e que ninguém sabe porque eles receberam esse privilégio do governo, porque eles estão prestando um desserviço à nossa Pátria. São cento e setenta filmes estrangeiros que passam na TV paulista, portanto na brasileira, por semana. Filmes esses de uma violência atroz, que não constrói nada, que não acrescenta nada à cultura do nosso povo. Isto é realmente uma questão de segurança nacional. Mas a cultura no meu país ainda é um privilegio, eu não tive o privilégio de passar do quarto ano primário, e o intelectual brasileiro é um marginal de classe média que sempre quer ganhar status através da cultura, por isso não se preocupa com os aspectos culturais da profissão, e nem pode se preocupar quando o nosso mercado de trabalho está totalmente amesquinhado pelas importações da cultura, que realmente subvertem o nosso povo e é por isso que eu tenho lutado, lutado para o mercado brasileiro de trabalho ser dos brasileiros.

É essa a minha ideia, mas essa ideia não estava exposta nos jornais daqui. Eu perguntaria agora, a esses garotos que não participaram dessa formatura, por que não concordam com minhas ideias, eles teriam coragem de dizer agora que não concordam com minhas ideias? Por essas ideias que eu estou defendendo aqui, eu fui preso várias vezes por essas ideias, que estou defendendo aqui. Eu fui várias vezes desempregado, várias vezes eu tive que ganhar o sustento dos meus três filhos e da minha companheira, a Valderez. Uma atriz excelente, que também era perseguida pelos veículos de comunicação, unicamente pelo crime de ser minha companheira. O meu velho soldado de todas as batalhas, eu tive que ganhar com a bossa nas esquinas, mas nunca parei de dizer que realmente os canais de TV, rádio e jornais tem de ser dos brasileiros. Como é que essa garotada vai sair e trabalhar se o artista americano morto está trabalhando mais que o artista brasileiro vivo, na tevê  brasileira? (palmas…) Meus senhores, meus senhores. A emoção que eu sinto de ser escolhido! É a primeira vez na vida que eu assisto uma formatura, é a primeira vez na vida, que eu participo de uma solenidade, é a primeira vez na vida que me sento entre autoridades e não  me sinto preso. (risos e palmas…)

Isso tudo, isso tudo me emociona, mas me emocionaria mais se nós não tivéssemos esquecido do que é democracia. Se nós, ao saírmos da faculdade, soubéssemos bem o que é a democracia. Democracia não é unanimidade, a unanimidade é burra, então eu não fazia questão da estar aqui hoje, ganhando por três votos ou vinte e oito votos, contra dez votos, contra sete votos, eu gostaria de ver os que perderam, hoje aqui como votos vencidos, porque isto é que é democracia. É quando se respeita a vontade da maioria. Nem sempre a maioria está certa, mas a gente tem que dar o direito de errarmos até aprendermos. Se nós não tivermos essa grandeza, jamais nós vamos poder brincar de democracia, jamais correremos o risco de cair numa democracia.

Isso tudo me entristece. Eu não poderia deixar de vir aqui. Eu sei do sacrifício desses moços em me trazer até aqui, eu sei que não poderia vir aqui e mentir. Também sei que não venho aqui, para desacatar ninguém, eu venho aqui e ocupo esse espaço, para tentar despertar as consciências daqueles que não atentaram aos detalhes. Eu posso ter todos os defeitos. Muitas vezes as pessoas me perguntam porque eu escrevo peça com palavrões e eu respondo que escrevo na linguagem do meu povo, que é a minha linguagem. Porque o meu vocabulário não tem mais que cinquenta palavras, mas o que importa é que eu comunico. Que eu sou um comunicador respeitado no mundo inteiro, como dramaturgo, como homem de teatro e como homem de tevê e nunca fiz a mínima concessão e nunca deixei de escrever numa linguagem que aprendi na rua das antigas laranjeiras. Agora, se vocês me permitem, quero me dirigir especialmente a essa turma. Eu sou o que sou porque cumpri sempre os meus compromissos, que assumi na velha esquina do meu quarteirão. Cumpram o juramento que vocês fizeram hoje aqui, porque essa é uma esquina das vossas vidas, e nós teremos honestamente um grupo de grandes profissionais. Muito obrigado (palmas).

“Filosofia da Educação” (1)

No mês de maio, dias depois de escrever aqui no blog uma nota sobre o lançamento do filme “Mr. Dreamer”, recebi um convite da Editora Contexto para escrever um livro sobre filosofia da educação. O livro faria parte de uma coleção voltada aos temas básicos de cursos de Pedagogia e licenciaturas. Eu estava envolvido na escrita de um livro que venho preparando desde 2015 e demorei um par de dias para aceitar a proposta. Aceitei, escrevi um pequeno plano de trabalho e uma amostra do primeiro capítulo. A proposta foi analisada pela Editora, e depois do sinal verde eu me tranquei em casa durante seis meses, escrevendo. No começo de dezembro eu conclui o manuscrito. É um livro pequeno, de umas 130 páginas, que escrevi tendo em mente o que combinei com a Luciana Pinski: um texto introdutório, destinado a estudantes e professores, escrito da forma mais simples e saborosa possível, sem notas e longas citações. Essa ocupação com o livro explica porque deixei o blog à deriva e peço que seja considerada, pelos três leitores que me restam, como uma desculpa razoável pelo silêncio nessa e noutras redes.

Hoje, dia 30 de dezembro, tenho a notícia de que o livro provavelmente será publicado em breve, no primeiro semestre do ano que vem. O manuscrito está passando por alguns testes e, aparentemente, está resistindo. Foi um desafio e tanto. Houve momentos em que pensei que não conseguiria. O que me deu coragem foi que a editora aceitou a proposta que fiz, de escrever o livro como se eu estivesse dando um curso de filosofia da educação, à semelhança do que aprendi com Ernst Tugendhat, com suas lições sobre ética e linguagem. A ideia básica foi partir de algumas intuições comuns sobre o tema e ir desenvolvendo-as da forma mais natural possível. Confesso aqui algo meio constrangedor: apesar de ter apresentado um plano do livro para a Editora, eu não tinha claro como seriam os fios condutores da trama; eles foram ficando claros somente na medida em que fui escrevendo.

Afinal, o que eu queria era isso: não apenas apresentar temas clássicos da filosofia da educação (natureza, finalidades etc), mas fazer isso de uma forma que fizesse sentido para estudantes de Pedagogia no Brasil, em ´primeiro lugar. Daí que, aos poucos, foram surgindo alguns fios condutores. A criança e a alfabetização é um deles. Decidi que o livro teria como exemplo central a criança e seu desenvolvimento, nos aspectos filosóficos. É por isso que o livro tem pouco a ver com os manuais mais populares da área. Há filosofia, há sociedade e política, mas o olhar que eu procurei ter é mais básico, e leva em conta o que eu chamo de “perspectiva de primeira pessoa” do professor e da criança.

Meu primeiro livro foi o Sentimentos de Outono, que surgiu por obra e graça da provocação do então diretor da Editora da UFSM, o Delmar Bressan. Tenho uma gratidão enorme a ele. Foi ele que sugeriu que eu submetesse um manuscrito ao escrutínio do Conselho Editorial. Depois veio o Ensino de Filosofia e Currículo, que saiu pela Editora Vozes, do Rio de Janeiro. E depois vieram os Quando ninguém educa e o Escola Partida, pela Editora Contexto, de São Paulo. Agora vem esse “Filosofia da Educação”. É um pouco cedo para mim dizer mais sobre o livro do que já disse aqui. Prometo aos poucos leitores que me restam voltar logo ao tema. Eu queria apenas, com essa postagem, mandar um chasque aos derradeiros leitores do blog, explicando que talvez o silêncio do semestre tenha valido a pena, quem sabe.

“Essas coisas do cotidiano”

No minuto 12:27 de Mr. Dreamer, um dos personagens faz um comentário sobre a questão da paixão pela música: “É transcendental, não é uma dessas coisas do cotidiano”. O personagem segue explicando para a gente: “Sabe, tem as coisas do dia a dia, e existe a música, tipo assim, tem as conversas e tem o canto, tem o caminhar, mas há o movimento e a dança, e muita coisa mais que no final das contas nos leva até à música”. O personagem parece ter saído do livro de Alva Nöe, Strange Tools, ao fazer essas comparações sobre as pequenas transcendências que podemos ter no cotidiano. Naquele minuto a gente se acomoda melhor na cadeira, pois “Mr. Dreamer”, que poderia ser apenas um documentário sobre a suposta crise de identidade do personagem – o rapaz de classe média, apaixonado pela música, que troca isso por uma segura carreira de executivo e reflete sobre isso quarenta anos depois -, passa a ser uma celebração do lugar da música na vida cotidiana.

Não é pouca coisa. A música é uma dessas facetas da humanidade que desafia a nossa capacidade de reflexão. Faça um teste, procure uma definição, ou uma boa caracterização sobre, afinal de contas, o que é a música, desse ponto de vista de seu lugar na nossa vida cotidiana. O resultado é sempre desapontador, pois há mais coisas em jogo em nossa paixão pela música do que a nossa capacidade de torna-las explicitas. A melhor coisa que um dia li sobre isso foi que a música é uma coisa que é duas: uma manifestação de nossas capacidades mais instintivas, ligadas ao corpo e, ao mesmo tempo, a forma de levar alguma paz para esses espaços brutos que existem em cada um de nós. Essa ideia parece boa. Seja ouvindo Bach, seja quando, no documentário, a gente vê Alice Tunney cantarolando Molly Malone (minuto 28:30), a música é capaz de fazer isso, pegar gente pelo pescoço e nos levar de arrasto para essa brecha estranha, na qual ficamos imprensados entre o corpo e a alma.

Foi assim que fui vendo Mr. Dreamer, como uma conversa fascinante sobre as coisas que a música pode fazer por nós. Quem controla o quê na música? Pois as vezes tudo se passa como se ela nos controlasse, como se os ritmos e as melodias fossem entrando nos músculos e nos ossos e nos levando para essa terra das pequenas imortalidades que estão ao nosso alcance, como também sugere um personagem (no minuto 43:00). O personagem principal, Pedro Sirotsky, quer nos contar a história do extravio que tirou a música do lugar central que ela ocupava na vida dele. Fazendo isso, ele vai nos levando a ver outras vidas, nas ruas de Dublin, que, tomadas pela mesma paixão, procuram resistir, com a música, aos extravios. É comovente dar um pulo nas ruas e espiar aquela gurizada que aposta nessa coisa meio transcendental, como diz, com toda a tranquilidade o garoto do minuto 12. Aquela criatura, capaz de ver o transcendental na rua, no meio do redemunho, é um desses sinais para ir adiante, para seguir tentando passar certas coisas a limpo, como se vê no “Mr. Dreamer.” Que venham outros, o tema recém foi tocado!

Mr. Dreamer, o documentário, foi dirigido pela Flávia Moraes, e está disponível no canal Now. Pedro Gomes da Rocha fotografou e Laura Brum foi a montadora. Não foi a familiaridade com eles que me fez gostar do filme. Foi a coisa toda, em especial a paixão pela música.

PS: o filme ganhou, em dezembro de 2021, no Closeup Edimburg Docufest o prêmio de melhor edição.

Derblay Galvão (1928-2021)

Faleceu ontem, em Brasília, o ex-reitor da UFSM, Derblay Galvão, aos 92 anos. Quebro o longo jejum de escrita nesse blog para dedicar a ele uma memória de gratidão. É apenas isso que vou fazer , escrever um parágrafo para me fazer lembrar de novo o quanto o seu reitorado, no final dos anos 1970, foi um grande marco na história da UFSM, em especial no que diz respeito ao processo de abertura política que foi vivido na transição da década. Para dizer de uma forma simples: Derblay, por assim dizer, peitou o “sistema”. Em uma época na qual as Assessorias de Segurança nas universidade federais metiam o nariz em tudo, ele foi tudo, menos subserviente. Quando João Figueiredo foi visitar a Exposição Agropecuária na UFSM, em 29 de setembro de 1979, a assessoria queria que ele mandasse apagar as pichações estudantis contra a ditadura, que haviam sido feitas na ponte da Avenida Roraima. Nada feito. “Quero que o presidente tenha uma visão realista do nosso campus”, foi a frase dele, e as pichações foram vistas por Figueiredo. Um pouco antes, no mesmo ano, ele deu luz verde para que fosse realizado, em conjunto com a Câmara de Vereadores, um seminário sobre mudanças na legislação trabalhista. Para esse seminário os convidados incluíam um senhor de nome Luis Inácio da Silva, de apelido Lula. O seminário foi realizado em agosto, e Lula foi palestrante, junto a Tarso Genro e Carlos Alberto Chiarelli, entre muitos outros. Derblay prestigiou o evento, contra a opinião de muitos que não gostaram da lista dos convidados. No mesmo ano, foi Derblay quem entregou a Adelmo Simas Genro o prêmio de primeiro lugar no concurso Felipe de Oliveira. Vou resumir: Derblay, por atitudes como essas, era respeitadíssimo na cidade, na imprensa, na comunidade universitária. Havia quem o achasse avançado demais para a época, mas ele parecia saber muito bem o que estava fazendo, e era respeitado por isso. Foi na gestão dele que assumi, pela primeira vez, a Coordenação do Curso de Filosofia. Artheniza Weimann, a grande e inesquecível professora Artheniza, assumiu, na mesma data, a coordenação do Curso de Geografia, e o Reitor Derblay Galvão sempre manteve aberta a porta do gabinete para nos ajudar a navegar naqueles tempos. Não vou incluir neste parágrafo o lado estritamente acadêmico de Derblay, pois aí a história seria longa demais: ele foi, pela experiência trazida do Centro de Ciências Rurais, uma peça decisiva na afirmação da pós-graduação da UFSM. E logo depois que deixou a Reitoria, ficaram tão evidentes os talentos dele que não houve outro caminho a não ser sua longa jornada em Brasília, junto ao MEC e a outros setores relacionados. As histórias de Derblay na UFSM são muitas, e eu não sei como caracterizar em poucas palavras seu reitorado. Para mim ele sempre foi um modelo de profissional que sabia combinar a mais fina elegância de trato pessoal com a mais clara paixão pela boa administração universitária pela ciência e pela política com pê maiúsculo. Só consigo pensar nele com gratidão pela pessoa que ele foi, e dele sempre vou recordar o respeito e o carinho que sempre teve comigo, mesmo nas horas difíceis. Ele era uma dessas figuras cada vez mais raras, tão raras que preciso escrever assim: um gentleman. Mas, acrescento, um cavalheiro que vinha com a formação política ao estilo maragato, quem sabe, petebista, segundo outras línguas. Nunca conversamos sobre isso, pois para mim sempre bastou sua firme elegância de eleger, em primeiro lugar, os seculares valores da universidade pública.

O menino que via no escuro

Era uma vez um menino que não tinha medo do escuro.

Os meninos e as meninas têm um medinho do escuro. Até gente grande tem medo do escuro. O menino dessa história, no entanto, não tinha nem medinho do escuro. De noite, se era precisava buscar um brinquedo esquecido no pátio, ele pegava a lanterninha e ia. Todos diziam que ele era um menino valente, pois andava no escuro com a lanterninha.

O menino foi crescendo sem medo do escuro.

Um dia seus pais acharam que era hora de levar o menino ao cinema. O filme contava a história de um menino que morava em uma casa muito grande, tão grande que um dia ele perdeu-se dentro dela e foi parar, misteriosamente, em uma outra casa ainda maior e ali passou muito trabalho, mas com a ajuda de um novo amigo que fez ali ele conseguiu voltar para sua casa de verdade. Quando os pais perguntaram se ele tinha gostado do filme, fez que sim com a cabeça.

Depois daquele dia o menino ficou mais quieto do que costumava ficar. A mãe dele reparou nisso no outro dia, ou melhor, na outra noite. Ele teve que buscar a bola no pátio e foi lá sem levar a lanterna. Depois, na hora de dormir, ele não deixou a lanterna ao lado da cama.

Sua mãe percebeu que ele, com o passar dos dias, quando estava quieto, ficava mais quieto do que de costume e  quando ficava agitado, ficava mais agitado do que costumava.

O que estava acontecendo com ele? Ele dizia que era nada, nada.

Até que um dia, depois de muita insistência, ele desabafou.

“É o escuro”.

A mãe perguntou de volta, com uma voz muito suave:

“O escuro? Mas não tens medo do escuro, agora vais no pátio, à noite, sem a lanterninha!”

Ele então disse uma coisa que deixou sua mãe muito intrigada. “Justamente. Não existe mais o escuro.”

A mãe estava picando umas couves para o jantar. Ela deixou a faca e as couves de lado ela era só ouvidos. “Fala mais, filho, me explica isso, que o escuro não existe mais!”.

“Mãe, quando eu fecho os olhos, eu continuo vendo as coisas”.

“Como assim? Se tu fechares os olhos, vais ver se eu estou picando as couves ou se eu parei?”.

“Não, não é isso. Se eu fechar os olhos sei que não vou ver a maninha sentada perto do fogão, nem o papai trabalhando no computador, nem tu picando as couves. Não é isso que eu quero dizer. Eu quero dizer que eu continuo vendo coisas, não adianta fechar os olhos, a gente continua vendo coisas, outras coisas. Não existe mais o escuro. Não adianta fechar os olhos, eu continuo vendo. De noite, quando eu durmo, eu sonho e continuo vendo coisas, e de dia, se eu fecho os olhos, não fica escuro, continuo vendo coisas. Eu achava que quando a gente fechasse os olhos a gente não via mais nada. Mas tem um monte de coisas que a gente vê de olhos fechados.”

A mãe tranquilizou o menino, dizendo que isso não era nada demais, “É só a imaginação da gente!”.

O menino não pareceu satisfeito. “Ainda mais que quando eu fecho os olhos, às vezes aparecem umas coisas que eu não gosto de ver. Parece que a gente não manda mais naquilo que vê”.

Agora ela era ainda mais ouvidos: “Como o quê, me conta.”

“São coisas ruins, montes delas, eu fico perdido, eu caio em um buraco, essas coisas. Eu só sei que eu queria que quando eu fechasse os olhos tudo ficasse escuro mesmo.”

“E desde quando isso está acontecendo contigo?”, perguntou a mãe.

“Não sei. Acho que foi depois da história sobre o menino que se perdeu e levou muito tempo para voltar para casa. Eu fico pensando nessas coisas que a gente pensa quando está de olho fechado.”

A mãe achou que era hora de voltar para as couves. Ela viu que nem era preciso tentar acalmar o menino. Ele já estava mais calmo só de falar. Ela ficou certa disso porque ele seguiu: “Eu só queria te dizer isso, o escuro não é bem escuro, é uma coisa grande, com muitas coisas dentro dele. Eu acho que o escuro é uma coisa muito estranha. O escuro funciona de um jeito muito esquisito.”

A mãe tinha terminado de refogar as couves. Ela pediu que ele ajudasse a arrumar a mesa e chamou todos para o jantar. As couves luziram no prato, fumegantes, e o escuro ficou quieto, no lado de fora da casa.

Sobre a pureza e o respeito na docência: Cecília Meireles, nos anos 1930.

Cecília Meireles escreveu muito sobre educação. Entre 1930 e 1941, ela publicou mais de 350 crônicas, hoje reunidas em livros, organizados por Leodegário de Azevedo Filho (Crônicas de Educação, Editora Global, 2017). São mais de 1.100 páginas de escritos sobre todo tipo de questão pedagógica.

Em uma dessas páginas ela escreveu, no distante ano de 1930, que uma condição essencial para o prestígio moral do professor é que ele tenha, diante de seus alunos, uma aparência de “pureza e respeito”. Essas expressões podem soar um tanto estranhas hoje, especialmente a primeira, “pureza”, mas também a segunda, “respeito”. Da primeira alguém diria que é ingênua; da segunda, que é apenas um artigo em falta generalizada na praça das relações humanas. Como eu gosto muito da Cecília, vou defendê-la aqui dessas críticas imaginárias.

Em que sentido um professor poderia ser “puro”? Pureza parece ser coisa de extremos, como cocaína e anjos. Como essa expressão poderia ser aplicada ao exercício de uma profissão como a do professor? Já a afirmação que o professor deve ter uma aparência de respeito é mais palatável. No entanto, o respeito hoje parece ser algo que se alimenta de uma exigência de reciprocidade simétrica, como se houvesse uma regra do tipo, “eu dou respeito na quantidade e na qualidade que me dão”. Assim, há quem diga que o professor deve ser amigo dos alunos. Nesse caso, seria um respeito simétrico, parecido com o de mesa de bar ou de jogo de futebol e esse tipo de respeito pouco tem a ver com a relação entre professor e aluno.

A frase dela é essa: “O professor que não aparece diante de seus alunos com uma auréola de pureza e respeito perenemente luminosa não deve ter a esperança de influir beneficamente no seu destino”.

A frase é inspiradora em cada detalhe. Em que poderia consistir a “pureza” do professor? Como pode haver um respeito assimétrico entre ele e os alunos? Finalmente, de que modo essa aparência resultaria em influências benéficas?

Eu não posso responder essas perguntas por ela, mas quero sugerir algumas direções de respostas. Em primeiro lugar, é notável que ela se refira ao “aparecimento” do professor na vida de uma criança. Antecipando algumas elaborações de Hannah Arendt, ela tematiza a diferença entre auto-apresentação e auto-exposição. Nossa auto-exposição, por assim dizer, é desligada de nossa vontade e escolha, pois nela exibimos as características que temos, por assim dizer, independentemente do que queremos. Já a minha auto-apresentação é uma questão de escolhas que eu faço sobre a imagem que quero mostrar ao mundo. Eu não posso mudar minha altura ou a cor dos meus olhos, mas se eu decido aparecer ao mundo como uma pessoa honesta, isso significa que faço uma promessa para mim mesmo, de agir sempre nesse sentido. Como diz Hannah Arendt, as virtudes humanas começam muito singelamente com o elogio que fazemos a elas. Depois da promessa-elogio, fazemos o melhor para cumpri-la. A hipocrisia, lembra ela, é a quebra dessa promessa.

E como devem apresentar-se os professores? Quais são as promessas que devem fazer? A “pureza” a que se refere Cecília tem muitos matizes. Creio que o principal deles é o da intenção pedagógica, que sempre deve ser temperada pela consideração das características do nível de ensino que estamos tendo em mente: criança, adolescente, adulto. Há casos, diz ela, nos quais “o professor tem a obrigação de lhe garantir a mais rigorosa neutralidade de atitudes, justamente para o livrar de imposições estranhas aos seus verdadeiros interesses.” Dizendo de uma forma muito direta: há casos nos quais “o professor quer pregar uma doutrina, quer obrigar os alunos a meterem na cabeça certas ideias.” É nessa direção, possivelmente, que ela está usando o conceito de “pureza”: ligado a situações que exigem “honestidade profissional”, ligado a situações que exigem “neutralidade política e religiosa da escola, oferecendo-lhe toda a sincera contribuição informativa, mas sem partido (…).” O itálico é meu.

É, de fato, possível o cultivo dessa auto-apresentação ligada à valores de neutralidade, isenção, respeito? Lembrando Rilke, ela diz: “Educar? Quem pode pensar em semelhante coisa? Quem existe, no mundo, capaz de missão de tal ordem?E, na verdade, o que fazemos são tentativas.” Cecília sabe bem, na companhia de Rilke, que educar é uma profissão impossível. É uma profissão que exige esforços e sacrifícios contínuos, onde a auto-apresentação está ligada a valores muito exigentes de honestidade profissional. Ela vai a detalhes:  

“... direi que a dificuldade maior de ser professor é quando os alunos já são gente crescida, que leu umas coisas e pensou um bocado.  Nessas condições, dar uma aula é precisamente o mesmo que fazer um exame.  E que exame! menos generosos, talvez, que as crianças, nesse particular, os jovens sabem analisar todos os defeitos do professor, com uma nitidez tão rigorosa que às vezes chegam a deixar passar desapercebida alguma qualidade que, também, por acaso, possuam.

Nada escapa: a voz, o gesto, a linguagem, a intenção, as contradições, os lapsos, a banalidade, os erros, etc.

Dessas coisas, porém, uma parece que atrai de preferência a curiosidade dos estudantes: a intenção. Diante de um professor que vai dar uma aula, os jovens que se dispõem a ouvi-la parece que preliminarmente se propõem esta pergunta: “Que será que este cavalheiro pretende fazer de nós?” Há, provavelmente, uma certa desconfiança. Uma certa cisma de que o professor quer pregar uma doutrina, quer obrigar os alunos a meterem na cabeça certas ideias.  E parece que há também uma prevenção inicial, de defesa.”

Veja que ela não apenas ilustra claramente o conceito de respeito assimétrico – o reconhecimento do direito do professor de “dar aula” – mas também o mecanismo da transferência, a cisma, a desconfiança, no caso. Ela pisa em território freudiano. Basta lembrar aqui a famosa passagem em que Freud (nas observações de 1915 sobre amor transferencial) recomenda ao analista a atitude de “distanciamento” (ou “neutralidade):

Visto exigirmos estrita sinceridade de nossos pacientes, colocamos em perigo toda a nossa autoridade, se nos deixarmos ser por eles apanhados em um desvio da verdade. Além disso, a experiência de se deixar levar um pouco por sentimentos ternos em relação à paciente não é inteiramente sem perigo. Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Em minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência.”

Sejam sentimentos de ternura ou de ódio, eles são sempre arriscados e não podem ser deixados à solta. Eu não sei o que Cecilia Meireles pensava sobre Freud e a psicanálise, mas sou levado a pensar que há muito mais nela e nele que deveria ser de nosso interesse, nós que estamos meio perdidos nesse grande sertão pedagógico.