“Essas coisas do cotidiano”

No minuto 12:27 de Mr. Dreamer, um dos personagens faz um comentário sobre a questão da paixão pela música: “É transcendental, não é uma dessas coisas do cotidiano”. O personagem segue explicando para a gente: “Sabe, tem as coisas do dia a dia, e existe a música, tipo assim, tem as conversas e tem o canto, tem o caminhar, mas há o movimento e a dança, e muita coisa mais que no final das contas nos leva até à música”. O personagem parece ter saído do livro de Alva Nöe, Strange Tools, ao fazer essas comparações sobre as pequenas transcendências que podemos ter no cotidiano. Naquele minuto a gente se acomoda melhor na cadeira, pois “Mr. Dreamer”, que poderia ser apenas um documentário sobre a suposta crise de identidade do personagem – o rapaz de classe média, apaixonado pela música, que troca isso por uma segura carreira de executivo e reflete sobre isso quarenta anos depois -, passa a ser uma celebração do lugar da música na vida cotidiana.

Não é pouca coisa. A música é uma dessas facetas da humanidade que desafia a nossa capacidade de reflexão. Faça um teste, procure uma definição, ou uma boa caracterização sobre, afinal de contas, o que é a música, desse ponto de vista de seu lugar na nossa vida cotidiana. O resultado é sempre desapontador, pois há mais coisas em jogo em nossa paixão pela música do que a nossa capacidade de torna-las explicitas. A melhor coisa que um dia li sobre isso foi que a música é uma coisa que é duas: uma manifestação de nossas capacidades mais instintivas, ligadas ao corpo e, ao mesmo tempo, a forma de levar alguma paz para esses espaços brutos que existem em cada um de nós. Essa ideia parece boa. Seja ouvindo Bach, seja quando, no documentário, a gente vê Alice Tunney cantarolando Molly Malone (minuto 28:30), a música é capaz de fazer isso, pegar gente pelo pescoço e nos levar de arrasto para essa brecha estranha, na qual ficamos imprensados entre o corpo e a alma.

Foi assim que fui vendo Mr. Dreamer, como uma conversa fascinante sobre as coisas que a música pode fazer por nós. Quem controla o quê na música? Pois as vezes tudo se passa como se ela nos controlasse, como se os ritmos e as melodias fossem entrando nos músculos e nos ossos e nos levando para essa terra das pequenas imortalidades que estão ao nosso alcance, como também sugere um personagem (no minuto 43:00). O personagem principal, Pedro Sirotsky, quer nos contar a história do extravio que tirou a música do lugar central que ela ocupava na vida dele. Fazendo isso, ele vai nos levando a ver outras vidas, nas ruas de Dublin, que, tomadas pela mesma paixão, procuram resistir, com a música, aos extravios. É comovente dar um pulo nas ruas e espiar aquela gurizada que aposta nessa coisa meio transcendental, como diz, com toda a tranquilidade o garoto do minuto 12. Aquela criatura, capaz de ver o transcendental na rua, no meio do redemunho, é um desses sinais para ir adiante, para seguir tentando passar certas coisas a limpo, como se vê no “Mr. Dreamer.” Que venham outros, o tema recém foi tocado!

Mr. Dreamer, o documentário, foi dirigido pela Flávia Moraes, e está disponível no canal Now. Pedro Gomes da Rocha fotografou e Laura Brum foi a montadora. Não foi a familiaridade com eles que me fez gostar do filme. Foi a coisa toda, em especial a paixão pela música.

PS: o filme ganhou, em dezembro de 2021, no Closeup Edimburg Docufest o prêmio de melhor edição.

Uma resposta em ““Essas coisas do cotidiano”

  1. Assisti anteontem. A transcendência da música nos salvando por instantes da experiência do cotidiano extraviado e esvaziado me lembrou o jazz de “A náusea” mas muitas outras coisas também. Tenho uma listinha de músicas, aliás, chamada “imagens que nos mantém presos”. Mas isso já seria conversa para outros momentos, entre um cafezinho e outro, depois de umas vacinas. Abraço!

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