Plínio Marcos em Santa Maria (1)

Plínio Marcos veio a Santa Maria (RS) em dezembro de 1976 para paraninfar os formandos do Curso de Comunicação Social (Jornalismo, Publicidade e Propaganda) da UFSM. Fátima Torri, uma das formandas, conta que fez parte do grupo que o trouxe de carro para Santa Maria, desde o Aeroporto, em Porto Alegre. Eu contei a ela que tinha uma transcrição do discurso do Plínio e ela me pediu uma cópia. Como é um texto muito longo para uma postagem de Facebook, coloco por aqui.

A história de como cheguei ao discurso é uma outra e longa história. Eu tenho também o discurso do Severino Goes e uma longa entrevista que o Plínio Marcos deu ao “Sabe Tudo”, um programa de rádio conduzido pelo radialista Arnaldo Souza. Plínio voltou a Santa Maria, em 1980, a convite do DADECA, para um debate sobre cultura popular e para apresentar sua peça, “Oração para um pé de chinelo”.

Eis, então, o discurso de Plínio Marcos, que transcrevi sem mudar nada importante no material original. Em outro momento vou postar o discurso do Severino. Há uma ou outra frase cujo sentido parece estranho, mas isso não atrapalha o conjunto da obra. Não quis editar mais do que o que me pareceu estritamente óbvio.

Discurso de Plínio Marcos:

(Palmas…) Senhores, Autoridades Civis, Militares, respeitável público; meus queridos formandos desta noite. Eu quero dizer para vocês que tenho quarenta e um anos de idade e vinte e cinco de profissão. Nesses vinte e cinco anos de profissão, eu fui muitas vezes grande e pequeno. Ganhei todos os prêmios que um artista do teatro brasileiro pode ganhar, sou várias vezes internacional. Sou jornalista não reconhecido pelo Ministério do Trabalho, sou ator, uma profissão que não existe. Sou escritor, outra profissão que não existe. Essas profissões que não existem me deixam na categoria de marginal. Nunca, em todos esses anos de profissão, deixei de correr risco e, muitas vezes fiquei desempregado.

Quando recebi o convite para paraninfar essa turma eu estava trabalhando de camelô em São Paulo, vendendo meus livros porque não tinha emprego. O mercado de trabalho no Brasil estava fechado para mim, eu não podia exercer nenhuma das atividades que sei. Era proibido. Onde eu arrumava emprego, vinha uma ordem para me despedir. Eu fui convidado como camelô.  Mas estava defendendo meu taco, as minhas ideias e só não senti uma forte emoção, porque realmente eu fiquei apavorado, com o que eu lia.

Soube que tinha sido escolhido paraninfo desta turma por una carta anônima que chegou em São Paulo, que tinha um recorte de jornal, que dizia que um grupo de pessoas tinha deixado de participar desta formatura, porque não concordavam com minhas ideias. Isto considero una traição, porque não diziam quais eram essas ideias e nesses tempos que correm você dizer que não concorda com a idéia de um cidadão e não deixar claro quais são essas ideias dele, é realmente um ato covarde. Isto tinha sido publicado na imprensa aqui. Então eu tenho o direito de chegar aqui, direito que me dá os paraninfandos de explicar quais são as minhas ideias.

Eu quero dizer para os senhores que eu sou quem sou, porque nasci, onde nasci. Nasci na rua antiga laranjeiras, num macuco, no cais do porto de Santos. Uma rua de chão de terra firme por onde os operários, quando iam para o caís do porto, passavam assobiando doces cirandas da liberdade, Essas cirandas que eu carrego na alma. Lembro que assumi os meus compromissos na esquina deste velho quarteirão, me lembro bem, quando num dia, distante da infância, chegava na nossa rua a convocação para que três dos nossos, três meninos, que brincavam com a gente de balão, fossem para a guerra combater o nazismo, e naquela noite nos reunimos todos os moradores daquela rua, no fim da rua, num beco. Íamos comemorar e rezamos e choramos. Não pedimos para eles voltarem vivos, pedimos para voltarem mortos, mas nunca voltarem perdendo uma parada para o nazismo, que queria escravizar o mundo.

No dia seguinte todos nós ostentávamos com a nossa roupa, roupas de escola, de grupo, com um “vê” de vitória parado no peito, com uma bandeira brasileira na mão, nas portas de nossas casas, vendo os nossos três soldados passar. O Zé Batateiro, o garoto que chefiava sempre nossas brincadeiras, o Boi, um rapaz muito forte, e o Valtinho, que era ponta esquerda do Jabaquara. E eles foram para a guerra e nós abanávamos. Nesta noite, todos nós, todos nós daquela rua sonhamos que queríamos ser soldados para esmagar aquele nazismo. Cantamos para eles. Que não permitisse Deus que eles morressem sem voltarem para lá, mas tinham que voltar vitoriosos. Choramos e sonhamos que queríamos ser soldados e combater esse nazismo. Era esse o Exército do meu povo, era esse o Exército da minha rua, era esse o Exército Brasileiro. Todos nós gostaríamos de, naquele momento, vestir a farda oliva para combater o nazismo. Tempos depois nossos soldados voltaram vitoriosos.  O  Zé Batateiro, com neurose de guerra, o Boi, morto e o Valtinho, sem perna.

Estava assumido um compromisso do menino Plínio Marcos com a liberdade, compromisso que honro sempre. Eu coloco a minha alma livre onde quero e coloco sempre contra quem detenha o poder, contra quem não dá liberdade de expressão para o meu povo. Depois eu tinha que escolher una profissão, como todos na minha rua, a gente tinha de escolher uma profissão. A profissão que me coube foi a de palhaço de circo. Foi aí que eu entrei para esse ramo e nele eu fui me desenvolvendo e fui vendo que o meu povo, que tinha derrotado o nazismo em batalhas cruentas que lesaram os melhores da minha rua, estava sendo sacrificado, bitolado e esmagado por una coisa, que é realmente uma questão de segurança racional, mas que todos fecham os olhos. O mercado de comunicação brasileira está ocupado pela cultura de consumo importada, que invade os nossos lares, que subverte o nosso povo, que descarateriza o homem comum brasileiro, que desvincula ele da realidade, da cultura popular brasileira e que esmaga as manifestações espontâneas do nosso povo. E um povo que não ama, não preserva suas formas de expressão mais autenticas, jamais será um povo livre. (palmas…)

Eu, meu senhores, nunca fiz cerimônia com os poderosos, com os que detém o poder, esses que estão com os canais de TV e rádio nas mãos, e que ninguém sabe porque eles receberam esse privilégio do governo, porque eles estão prestando um desserviço à nossa Pátria. São cento e setenta filmes estrangeiros que passam na TV paulista, portanto na brasileira, por semana. Filmes esses de uma violência atroz, que não constrói nada, que não acrescenta nada à cultura do nosso povo. Isto é realmente uma questão de segurança nacional. Mas a cultura no meu país ainda é um privilegio, eu não tive o privilégio de passar do quarto ano primário, e o intelectual brasileiro é um marginal de classe média que sempre quer ganhar status através da cultura, por isso não se preocupa com os aspectos culturais da profissão, e nem pode se preocupar quando o nosso mercado de trabalho está totalmente amesquinhado pelas importações da cultura, que realmente subvertem o nosso povo e é por isso que eu tenho lutado, lutado para o mercado brasileiro de trabalho ser dos brasileiros.

É essa a minha ideia, mas essa ideia não estava exposta nos jornais daqui. Eu perguntaria agora, a esses garotos que não participaram dessa formatura, por que não concordam com minhas ideias, eles teriam coragem de dizer agora que não concordam com minhas ideias? Por essas ideias que eu estou defendendo aqui, eu fui preso várias vezes por essas ideias, que estou defendendo aqui. Eu fui várias vezes desempregado, várias vezes eu tive que ganhar o sustento dos meus três filhos e da minha companheira, a Valderez. Uma atriz excelente, que também era perseguida pelos veículos de comunicação, unicamente pelo crime de ser minha companheira. O meu velho soldado de todas as batalhas, eu tive que ganhar com a bossa nas esquinas, mas nunca parei de dizer que realmente os canais de TV, rádio e jornais tem de ser dos brasileiros. Como é que essa garotada vai sair e trabalhar se o artista americano morto está trabalhando mais que o artista brasileiro vivo, na tevê  brasileira? (palmas…) Meus senhores, meus senhores. A emoção que eu sinto de ser escolhido! É a primeira vez na vida que eu assisto uma formatura, é a primeira vez na vida, que eu participo de uma solenidade, é a primeira vez na vida que me sento entre autoridades e não  me sinto preso. (risos e palmas…)

Isso tudo, isso tudo me emociona, mas me emocionaria mais se nós não tivéssemos esquecido do que é democracia. Se nós, ao saírmos da faculdade, soubéssemos bem o que é a democracia. Democracia não é unanimidade, a unanimidade é burra, então eu não fazia questão da estar aqui hoje, ganhando por três votos ou vinte e oito votos, contra dez votos, contra sete votos, eu gostaria de ver os que perderam, hoje aqui como votos vencidos, porque isto é que é democracia. É quando se respeita a vontade da maioria. Nem sempre a maioria está certa, mas a gente tem que dar o direito de errarmos até aprendermos. Se nós não tivermos essa grandeza, jamais nós vamos poder brincar de democracia, jamais correremos o risco de cair numa democracia.

Isso tudo me entristece. Eu não poderia deixar de vir aqui. Eu sei do sacrifício desses moços em me trazer até aqui, eu sei que não poderia vir aqui e mentir. Também sei que não venho aqui, para desacatar ninguém, eu venho aqui e ocupo esse espaço, para tentar despertar as consciências daqueles que não atentaram aos detalhes. Eu posso ter todos os defeitos. Muitas vezes as pessoas me perguntam porque eu escrevo peça com palavrões e eu respondo que escrevo na linguagem do meu povo, que é a minha linguagem. Porque o meu vocabulário não tem mais que cinquenta palavras, mas o que importa é que eu comunico. Que eu sou um comunicador respeitado no mundo inteiro, como dramaturgo, como homem de teatro e como homem de tevê e nunca fiz a mínima concessão e nunca deixei de escrever numa linguagem que aprendi na rua das antigas laranjeiras. Agora, se vocês me permitem, quero me dirigir especialmente a essa turma. Eu sou o que sou porque cumpri sempre os meus compromissos, que assumi na velha esquina do meu quarteirão. Cumpram o juramento que vocês fizeram hoje aqui, porque essa é uma esquina das vossas vidas, e nós teremos honestamente um grupo de grandes profissionais. Muito obrigado (palmas).

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