Uma conversa com Emanuel

Augusto Aras, o procurador-mor, foi ontem ao STF, contestar trechos da resolução que ampliou os poderes do TSE para enfrentar a desinformação na campanha. Ele diz que alguns artigos da peça do TSE violam princípios constitucionais, como a liberdade de expressão, e incluem alguma forma de censura. A arenga dele diz que o remédio para a desinformação é mais informação, e não censura. E que na democracia “a palavra é o poder do cidadão.”

Edson Fachin, pelo STF indeferiu hoje a arenga de Aras. Ele entende que a liberdade de expressão não pode ser usada para a erosão da coisa toda da eleição. Não se trataria de censura prévia, ele diz. E mandou o causo para discussão posterior, sem urgência.

Perguntei para o Emanuel o que ele acha do imbróglio. Ele disse que podia, no máximo, arriscar uma opinião. “Pois que dar uma opinião, todo mundo sabe disso, é considerar que algo é verdadeiro, mas nesses casos a gente sabe que não tem provas, apenas acha, por fumaças, que a coisa é verdadeira. Acreditar em algo já é algo mais. Quando a gente acredita em algo estamos, por assim dizer convencidos por dentro, sem poder provar por fora, com evidências. E aí, Emanuel acrescentou, vem a coisa de saber algo. Quando a gente sabe algo, não apenas acreditamos, mas temos alguma evidência que podemos mostrar aos outros viventes.”

“O Fachin”, disse o Emanuel, “não me parece estar falando dessas coisas. As tais de redes sociais têm uma relação fraca com opiniões, crenças e saberes. As tais de redes são um campo de batalha de memes”, Emanuel insistiu. “Isso não tem nada a ver com liberdade de expressão!

“Falar em liberdade de expressão e censura no caso específico de uma disputa eleitoral como essas de hoje em dia é jogar areia nos olhos de quem já está torto da vista, esse vocabulário é pré-internético.”

Bem que eu quis seguir a conversa, mas estava na hora dele se retirar para o descanso diário, ele tem dessas coisas.

No dia dos professores, nessa primavera de 2022

Há tanta coisa que pode ser chamada de “educação” que deveríamos desconfiar que as definições dela são sempre e apenas tentativas de mapeamento de uma vasta região de atividades, situações e condições. Veja essa lista: assistência, cultivo, conservação, criação, desenvolvimento, disciplinamento, estudo, escolaridade, formação, inibição, instrução, informação, orientação, prática, proibição, repressão, reprodução, transmissão, trato, treinamento. Cada uma dessas palavras indica algum aspecto de “educação”, em sentido forte ou fraco, feliz ou infeliz, desejável ou não. A gente devia pensar “educação”, portanto,  como uma espécie de guarda-chuvas, que abriga dezenas de conceitos de menor alcance.

Quando acrescentamos a essa condição semântica alguns elementos de história (econômica, social, cultural etc.), fica fácil ver por que a tarefa de definir “educação” não é apenas difícil, é mesmo interminável.

É tentador lembrar aqui a observação de Freud sobre as profissões impossíveis: analisar, educar, governar. Numa das ocasiões em que abordou o tema, ele acrescentou que o objetivo da educação é “orientar e assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de se extraviarem” (Freud, XIV, 341).  É evidente que Freud pensou a “impossibilidade” da educação em um sentido fraco ou figurado. É como se ele dissesse que as atividades que visam proporcionar autonomia aos seres humanos não podem prever ou garantir a realização desses objetivos. Essas ações  – analisar, educar, governar – não estão baseadas em um conhecimento exaustivo de seus objetos, pois eles se renovam constantemente e são fontes de novas ações, igualmente conscientes. Não é possível educar (ou analisar) com base em um saber prévio e completo sobre o ser da criança e sobre o que é educar. Não dispomos dessas coisas, e a própria criança é uma fonte constante de indeterminações e novidades. As práticas que visam a autonomia dos seres humanos têm essa “impossibilidade” de exaurir ou determinar completamente seus objetos.

Outra razão para as dificuldades da educação foi antecipada por Rousseau. Ele viu que educar, no seu sentido amplo e no sentido escolar, é uma atividade informada pelo saber disponível pelos educadores, mas também é um processo de intencionalidade difusa. As intenções que cercam a criança quase nunca são harmônicas e convergentes e há mais do que essas intenções em torno dela. Como disse Rousseau, cada um de nós é objeto de, pelo menos, três educações: somos educados pelos seres humanos que nos cercam, pelas coisas e pela natureza. Há mais sobre isso no meu Filosofia da Educação (Contexto, 2022).

A educação humana é uma atividade, mas é também um processo, híbrido, tenso, aberto. Nas situações educacionais rolam ações e intenções humanas, mas há também eventos e processos sobre os quais não temos controle. Os mestres estão por toda a parte e usam disfarces. Uma boa educação, sugere Rousseau, é aquela na qual conseguimos equilibrar as lições que recebemos dos outros, das coisas e da natureza. Sempre que um desses mestres predomina sobre os demais, estamos em risco. E chega um momento em que a educação da criança é também autoeducação. 

Como podemos nos orientar diante dessas complexidades? Em uma situação semelhante, Freud recorreu não apenas à psicanálise, mas também à intuição linguística. Diante de temas vastos, que pertencem ao conhecimento comum, devemos, diz ele, confiar em nossos hábitos linguísticos.  (Freud, XXI, 109) Através de uma combinação entre os achados de sua teoria e algumas boas intuições, ele sugeriu que o campo semântico da educação tem uma unidade primitiva e importante. A tarefa primeira da educação, diz ele, é assistir a criança no controle de seus impulsos. Na tradução brasileira: “Vamos tornar claro para nós mesmos qual a tarefa primeira da educação. A criança deve aprender a controlar seus instintos. É impossível conceder-lhe liberdade de pôr em prática todos os seus impulsos sem restrição. (…) Por conseguinte, a educação deve inibir, proibir e suprimir, e isto ela procurou fazer em todos os períodos da história.” (Freud, XXII, 182)

Há uma arte exigente nisso. O educador está diante de problemas difíceis. O primeiro é o conhecimento do que é uma criança. O educador, diz Freud, precisa aprender o que é uma criança, qual é sua constituição. Em segundo lugar, diante dele está sempre uma criança particular, e ele deve descobrir, a partir de pequenos indícios, o que se passa na mente dela. Somente assim o educador será capaz de dar conta do terceiro e do quarto desafio: dar à criança a quantidade correta de amor e manter sua autoridade de cuidador.

Na visão freudiana, a arte pedagógica consiste em nossa habilidade para traçar um caminho “entre o Cila da não interferência e o Caríbdis da frustração.” (Freud, XXII, 182). Temos que descobrir o “ponto ótimo” para nossas ações, que reside em obter o máximo com o mínimo de danos, pois há uma questão central, incontornável: o processo educativo implica, em alguma medida, em inibir, proibir e suprimir aquelas condutas que, balizadas pelo princípio do prazer, impedem o avanço para o princípio da realidade. A criança precisa chegar a ser um adulto, e assim Freud insiste que há apenas uma educação, a educação para a realidade. A questão de proibir a criança é apenas uma questão de quando, onde e como.

É conhecimento comum, portanto, que educação rima com frustração. É preciso acrescentar mais coisas, no entanto, em espírito freudiano. A primeira delas é que todas as crianças têm uma humanidade em comum, mas cada uma tem uma disposição constitucional própria. Isso exige de nós não apenas paciência e arte, mas também comedimento em relação aos métodos pedagógicos. A diversidade humana faz com que seja bom que existam muitos métodos pedagógicos, e apenas uns poucos princípios gerais para todos eles.

Lembrei acima que Freud sugeriu quatro orientações pedagógicas fundamentais: reconhecer a individualidade constitucional da criança; inferir, a partir de pequenos indícios, o que está se passando na mente dela; dar-lhe a quantidade exata de amor e manter um grau eficaz de autoridade.

Pois é de amor que se trata, no final das contas. O amor, bem compreendido, é a grande baliza da realidade e o grande princípio da educação. O amor, diz Freud, é o grande educador: “Lado a lado com as exigências da vida, o amor é o grande educador, e é pelo amor daqueles que se encontram mais próximos dele que o ser humano incompleto é induzido a respeitar os ditames da necessidade e a poupar-se do castigo que sobrevém a qualquer infração dos mesmos.” (Freud, XIV, 352)

O nó da educação consiste, no conhecimento comum de Freud, na inevitabilidade da navegação entre o Cila da não interferência e o Caribdis da frustração. O amor é o princípio, e o compasso é uma ideia central na tradição freudiana: que o educador, deve ser, ele próprio, analisado. É difícil fazer para os outros o que não fazemos para nós mesmos. Com essa atitude em mente, o desafio de educar segue sendo terrível e maravilhoso, mas conseguimos conviver melhor com as incertezas e as impossibilidades da educação e de seu conceito.

Bibliografia

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIV.

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XIX.

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976.Vol. XXI.

Freud, S. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XXII.