A marcha das vadias: o que uma criança aprende, quando aprende a palavra “mulher”?

Acompanhei ontem um trecho da Marcha das Vadias. Como imaginei, encontrei nela muitos aluna/os e ex-aluna/os meus e foi muito bom vê-los, alguns de cara pintada, empunhando cartazes, outros mais discretos, acompanhando a marcha e ajudando na segurança. A concentração foi feita na Concha Acústica, no Parque Itaimbé, a partir das duas da tarde. Caia uma garoa finíssima, que cedeu aos poucos. Passava das três quando a Marcha saiu, rumo ao Calçadão, para depois ir para Gare, inaugurando, en passant, a renovação da Avenida Rio Branco. Não sei estimar quantas pessoas participaram, mas acho que pode ter chegado a duas mil. Fiz algumas fotos até a passagem pelo Calçadão. Durante a caminhada não faltou oportunidade para fazer um exercício de imaginação sobre o que podemos e o que devemos pensar quando somos surpreendidos pelos dizeres dos cartazes, pelas pinturas nos corpos, pela nudez parcial de alguns dos participantes, pelas cantorias irreverentes acompanhadas por bumbos de lata. Quanto à primeira alternativa, a resposta é: podemos pensar qualquer coisa, começando pelas mais bobas e distraídas. E quanto ao que devemos pensar diante da Marcha?
Bem, eu acho que é isso que a Marcha das Vadias nos pede, essa coisa singela e trivial: que a gente pare para ver os cartazes, as pinturas, as cantorias que brotam dos corpos que caminham em um misto de indignação e alegria, que a gente pare e pense um pouco: onde, quando, como, com quem, de quem, contra quem, em quais contextos, sob quais condições, aprendemos o significado da palavra mulher.
Algumas mães e pais levaram as filhas e filhos para caminhada e essas crianças me lembraram as crianças das minhas aulas, quando nelas pergunto para meus alunos, “o que aprende uma criança quando aprende uma palavra? Ela aprende o significado da palavra ou o que a coisa é?”. Depois que faço essa pergunta (inspirado, por certo, em Cavell) eu fico quieto, dou tempo e espaço para que eles pensem sobre ela, para que sozinhos percebam os mundos que se escondem nessa pergunta simples. Depois, com o passar das horas e dos dias, concluímos que muitas vezes o bom caminho de reflexão nos responde assim: por vezes, quando uma criança aprende uma palavra, não aprende nem o significado da palavra, nem o que a coisa é.
E foi assim que fui lendo os cartazes e ouvindo as cantorias: os desenhos, as frases, as cantorias, as faces em êxtase e os seios à mostra eram um convite para que a gente pensasse: onde, quando, como, com quem, de que, contra quem, em quais contextos, em quais situações, em quais opressões, em quais alegrias, em quais tristezas cada um de nós aprendeu o significado da palavra “mulher”? A marcha pedia apenas essa coisa simples: pense nisso, pense por um momento que é possível que muitos de nós não tenhamos aprendido nem o significado da palavra nem o que a coisa é; e que precisamos caminhar mais um pouco mais e mais depressa para aprender, para fazer algo contra os numeros que contam a agressão contra as mulheres por todas as partes; uma agressão que não brota da natureza humana, mas sim dessa coisa frágil de aprender a falar, que nos acontece desde bebês.
A marcha se foi, descendo a Rio Branco, no rumo da Gare, e eu precisei deixá-la. Voltei para casa com uma ponta de orgulho por morar numa cidade que encena para si mesma esses dramas de aprendizagem. Fiquei lembrando de uns versos de Ledo Ivo, sobre o fato do mundo ser muito grande, e nele, “pela mão, levam-me as palavras”. A poesia, pensei, nos ajuda a manter mais puras as palavras; e então a marcha é uma espécie de poesia que caminha pela calçada, para manter em aprendizado a palavra mulher.