Tempo de aprender

Não foi apenas por curiosidade que eu me matriculei no curso de alfabetização oferecido pelo MEC, intitulado “Tempo de Aprender”. O curso é, evidentemente, virtual e consta de diversos módulos que a gente vai percorrendo e fazendo as avaliações no final de cada um. Eu estou fazendo o curso porque, nessa quarentena, convivo com minha neta, que está na pré-escola, e decidi aprender mais sobre alfabetização. Eu me interesso pelo tema desde que trabalhei com o grupo do GEEMPA, durante vários anos, em Porto Alegre, nos anos 1990. O GEEMPA, para quem não sabe, é uma instituição dirigida pela Professora Esther Grossi, dedicada ao estudo da didática da alfabetização, de matemática e de outros temas ligados às séries iniciais. Foi ali que eu consolidei meu interesse por educação. Agora, com minha neta às vésperas do “primeiro ano”, voltei a pensar em questões mais práticas ligadas ao processo de alfabetização. Tenho também uns interesses mais teóricos no tema. Desde 2015 tenho trabalho em um livro sobre as relações entre o surgimento da escrita alfabética e a filosofia, e assim esses temas de alfabetização e escrita tem me ocupado bastante.

Então, como disse, fiz minha inscrição no curso do MEC, “Tempo de Aprender”. Acho que estou me saindo bem, tenho tirado boas notas nas provas. A minha surpresa no curso foi essa: como tenho um bom tempo livre, dada a quarentena atual, logo fiquei um pouco frustrado, pois o curso não está ainda pronto. Hoje (29 de Março de 2020) menos da metade do curso (oito módulos) é oferecido. Eu fiquei meio frustrado porque esse projeto, “Tempo de Aprender”, é do atual governo, que já está no MEC faz ano e pouco. O curso que eles estão oferecendo é baseado no material online de uma universidade da Flórida. Fui lá conferir: as fichas de atividade são adaptadas, em bom nível. E todo o curso tem como ponto de partida conceitual, digamos assim, o desenvolvimento de consciência fonológica. Para quem é do ramo sabe que aqui há o tema de uma guerra cultural de métodos de alfabetização. Pensando em parentes meus que são professores na região da fronteira sul do Brasil, estou achando que o “Tempo de Aprender”, mesmo como está, é bom. Aqui entre nós tem muito disso, o “bom” é inimigo do “ótimo” e a gente se estrepa.

Mas isso é outro capítulo, muito longo para uma pequena escrita de quarentena.

Resenha do "Escola Partida", por Bruna Frascolla

Victor Costa escreveu a primeira resenha do Escola Partida: ética e política na sala de aula. (Editora Contexto, São Paulo, 2020); hoje saiu, na Gazeta do Povo, de Salvador, uma resenha assinada por Bruna Frascolla. Há outras, pelo que sei, por sair. O título da resenha feita por Bruna (Doutora em Filosofia pela UFBA) foi escolhido pelo Jornal e saiu algo como “Paulo Freire: de manifesto maoísta a manual de pedagogia”. Nas condições de distanciamento social em que estou trabalhando agora (não estou em Santa Maria, em minha casa, e escrevo em um computador improvisado, longe de meu escritório) não consigo colocar aqui o link para a matéria. Se o leitor interessado digitar esse título em um buscador poderá espiar o escrito dela.

Gostei muito da resenha feita por Bruna. Ela tocou temas diferentes daqueles que foram abordados por Victor e arriscou uma linha de entendimento sobre a minha abordagem do “Escola sem Partido”. A decisão dos editores da Gazeta do Povo, de privilegiar no título da resenha a retomada que fiz sobre a recepção de Paulo Freire pela pedagogia brasileira, mostra o quanto ainda há de, digamos assim, de um “contencioso” sobre esse tema. Havia muito mais sobre Paulo Freire na primeira versão do manuscrito, mas aos poucos me convenci que não valia a pena manter no livro mais essa frente de discussão, se quisesse ter como foco do livro os temas de ética e política na sala de aula e o “Escola sem Partido”. Mas não há como deixar de reconhecer que a recepção de Paulo Freire está longe de ser um assunto razoavelmente encaminhado entre nós.

Deixo aqui meu agradecimento ao Victor e à Bruna pelas resenhas. Deixo aqui o link, sem a certeza que vai funcionar direito.

https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/paulo-freire-manifesto-maoista-manual-pedagogia/

Deve a Medicina basear-se em evidências?

Se conhecimento chovesse, seria relativamente fácil tê-lo: bastaria estender a mão para ter um pouco dele nos dias da chuva. Seria preciso ter a sorte de cair na mão o tipo e a quantidade certa. Tomar banho nessa chuva, no entanto, não seria garantia de ficar molhado com o conhecimento adequado aos nossos interesses. De que me serve um banho de física quando decido ser um eficiente hortelão? E se me cai um banho de filosofia quando preciso elaborar estatísticas seguras? 

Pouca coisa chove além da velha e boa chuva: poeira e bençãos, se diz. A primeira cai sobre todos, sem distinção, a segunda depende das crenças da gente. E se chovesse conhecimento, nem por isso a gente colocaria a mão para fora, como já antecipou Samuel Johnson. O mais seguro mesmo é a gente sair atrás daquele conhecimento que a gente precisa, no momento em que a gente precisa. Uns de nós fazem disso a profissão e vão fazer nuvens de física, que choverão na hora certa, para as coisas em que ela se faz necessária; outros fazem nuvens de agronomia ou de matemática e assim por diante. Tudo isso tem custo. 

É possível viver sem essas chuvas? Uma descrição bem pedestre do modo como a gente vive o cotidiano sugere que sim e que não e que, portanto, depende de duas coisas: a primeira delas é que no mais das vezes a gente vai gastando nosso capital cognitivo inicial, aquela imensa quantidade de coisas que a gente aprendeu desde que se conhece por gente e que inclui amarrar os cordões do sapato, escovar os dentes e regar as alfaces na horta. A gente aprende a aceitar e a contar com muitas coisas e fica contente com isso: que a chuva molha e pode nos deixar gripados, que não é bom dar cachaça para as crianças e ponto final. A outra coisa é que quando o bicho pega na horta da gente, a gente procura quem sabe mais do que nós: físicos, médicos, estatísticos, agrônomos, as nuvens de conhecimento.

Estou lembrando dessas coisas porque descobri recentemente que a expressão “educação baseada em evidências”, que se tornou popular no Brasil faz uns quinze anos (voltarei a esse tema em outro momento) surgiu ainda no século passado, na Inglaterra, para servir como referência contrária a, por assim dizer, “educação baseada em ideologia política”. O planejamento educacional poderia estar baseado, em um lado, nas evidências contidas em ricas estatísticas e dados sobre escolarização e aprendizagem, e, de outro, baseado nas concepções sociais e filosóficas sobre sociedade e história de Mengano da Silva e outros grandes pensadores. 

Desculpe o leitor a natureza absolutamente esquemática desse paralelo. Mas veja que as questões por detrás dessa expressão, “educação baseada em evidências”, são tão presentes que tivemos, no ano passado, um evento chamado “Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências”, a CONABE. Nesse evento ficou previsto a criação de um RENABE, um “Relatório Nacional de Alfabetização baseada em evidências”. E por aí a vara vai curvando, de volta. Voltarei ao tema. 

O que eu queria dizer, para encerrar esse retorno ao blog, já que meus 12 leitores ainda estão vivos e em quarentena, é que esse tema da educação baseada em evidências, ao que indicam as fontes que consultei, faz parte do clima no qual surgiu, em Oxford, nos anos 1990, um programa de mestrado em “cuidados de saúde com base em evidências”. O programa se fazia necessária porque uma coisa é formar profissionais da saúde capacitados, e outra bem diferente é garantir que a conduta deles, na sequência da vida, vai continuar inspirada em bons hábitos de registros, estatísticas, atualizações, e, acima de tudo, de aprendizado constante.  Pois não é que estamos vendo, aqui no Brasil dos anos 2020, no começo da implantação das medidas de contenção do coronavírus, um debate no qual se insinua o tema: deve a medicina estar baseada em evidências?  Será preciso chamar uma conferência nacional de medicina baseada em evidências? Um dos grandes teóricos da educação progressista, Henri Giroux escreveu um livro chamado Teoria e resistência na Educação (Londres, Heinenmann, 1983).

A impressão que tenho é que está surgindo agora uma espécie de “Teoria e resistência na Medicina”. Até mesmo devotos comunistas dos anos 80, como o deputado Osmar Terra, parecem agora estar rabiscando alguma coisa nessa direção. Acho que estenderam a mão para fora, na chuva, mas não sei bem o que pegaram. Bênçãos?

Caetano, Bishop & Schwarz

Publiquei, no blog da Editora Contexto – blog.editoracontexto.com.br – um texto sobre, entre outros nomes e temas, Caetano Veloso, Elisabeth Bishop e Roberto Schwarz. Caetano leu Bishop e foi lido pelo Roberto. Ele gostou dela e Roberto não gostou dele. Deu um samba que dura exatos cinquenta anos e não terminou, na minha opinião. Escrevi o texto, originalmente, para meu livro, A Escola Partida – Ética e política na sala de aula, que deverá começar a circular a partir da metade de fevereiro do ano que vem, publicado pela Editora Contexto, de São Paulo. No processo de editoração do livro concluímos que o trecho, que era ainda mais longo do que esse que saiu no blog, era um desvio demasiadamente intrincado na minha argumentação.

Para minha surpresa, semanas atrás começou toda essa polêmica ao redor da Elizabeth Bishop! Foi assim que surgiu a ideia de divulgar o capítulo suprimido do livro. Eu acho que o tema dá um livro, mas como recém terminei de escrever “A escola partida”, não quero pensar nisso muito cedo.

Deixo aqui, então, a sugestão, para os sete leitores que me restam no blog: Quem quiser um gostinho do que vai aparecer no Escola Partida, saiba que, ao ler o texto sobre Bishop, Caetano e Scharwz, vai conhecer um capítulo que estava originalmente ali.

Não haverá aulas amanhã, haverá aula amanhã.

Durante quarenta e cinco anos fui professor na UFSM, em diversos cursos: Filosofia, Psicologia, Administração, Economia, Letras, Medicina, Fisioterapia, Extensão Rural, Colégio Politécnico e por aí vai. Quando comecei minha vida profissional, em 1974, em plena ditadura militar, a UFSM já era uma universidade de referência, não apenas porque havia criado mecanismos de gerenciamento acadêmico e administrativo inovadores no Brasil, mas também porque manteve um ritmo acelerado de profissionalização de seu corpo docente e de seus cursos. Já nos anos 1960 a UFSM tinha uma política de mandar professores para o exterior, para que tivéssemos aqui, de forma pioneira no Brasil, um sistema de pós-graduação. Foi durante os anos 1970, ainda na ditadura, que a pós-graduação na UFSM expandiu-se para áreas como Educação e Filosofia, e os regimes de trabalho com dedicação exclusiva deixaram de ser privilégio das áreas duras.

A UFSM começou como uma pequena universidade do interior. Hoje é uma pequena galáxia. Uma das primeiras coisas que o Professor Mariano fez foi comprar um piano para o Centro de Artes, como símbolo da importância das Artes e Humanidades na UFSM. E por aí ele foi. Hoje, sexagenária, a UFSM é motivo de orgulho para milhares de pessoas que por aqui passaram, para milhares de pessoas que usufruem dela, de uma ou de outra forma. A UFSM não apenas ajudou a transformar o interior do Rio Grande, ela também transformou-se em uma instituição relevante para si mesma, diante de si mesma.

Há problemas, há desafios, mas é preciso lembrar que temos apenas seis décadas. Uma universidade jovem, na Europa, tem seis séculos de funcionamento. As mais antigas têm o dobro.  Precisamos identificar onde somos fortes e melhorar, precisamos conhecer nossas fraquezas e mudar.

Conheci pessoalmente todos os reitores da UFSM, desde a fundação. Tenho histórias com cada um deles, gostei mais de uns do que de outros, critiquei publicamente mais uns do que outros. Mas vendo essa série de nomes em retrospectiva preciso admitir para mim mesmo que tenho orgulho de todos e de cada um deles, sem exceções. Conheci pessoalmente todos os reitores da UFSM, desde a fundação; vi cada um deles dedicar-se à Universidade como se essa fosse a vocação final da vida de cada um, com paixão e responsabilidade. Todos eles dedicaram o melhor de si, como os pedreiros, a montar essa delicada obra do espírito que é uma universidade. Daqui a sessenta anos estaremos ainda melhor e com um pouco de sorte continuaremos tendo reitores que nos causam orgulho.

É claro que fico muito triste quando vejo, nos dias que correm, pessoas que foram ex-alunos da UFSM, que ficaram bem de vida com as profissões que ali aprenderam, ceder à tentação da crítica fácil às universidades públicas. Ouvem uma coisa ali, enxergam outra ali e saem a falar mal do prato onde se alimentaram. Me consolo pensando que a Universidade de Bolonha, que tem mais de mil anos, deve ter passado por algo parecido. Eles passarão e nós, que amamos a universidade, seguiremos. Se eu ainda fosse professor da UFSM, amanhã, em caráter absolutamente excepcional, eu não iria para minha aula. Eu avisaria os alunos e reservaria o dia para protestar contra aqueles de agenda curta e mesquinha, que pisoteiam no orgulho que deveriam ter de sua universidade. Se eu soubesse, tocaria piano na praça. Quem sabe homenageando assim nosso primeiro reitor o clima melhora, e a gente se toque mais.

Os generais e o bonzo de Virgínia

“ – Olavo passou do ponto?

 O general respondeu:

“ – Sim. Passou do ponto. Aliás, já vem passando do ponto há muito tempo, agindo com total desrespeito aos militares e às Forças Armadas. E, quando digo respeito, é impressionante que ele, como um homem que se pretende culto e inteligente, desconhece normas elementares de educação. É também muito grave a maneira como ele se refere com impropérios a oficiais da estatura dos generais Mourão, Santos Cruz e Heleno e aos militares em geral.”

Como se sabe, as expressões que Olavo de Carvalho tem usado para se referir aos generais variam pouco e agridem muito. Não vou repeti-las aqui. Já os generais procuram não passar a linha escatológica; o general Eduardo Vilas Boas sugere apenas que, quem sabe Olavo seja “uma pessoa doente”, “um Trotski de direita”, “com pouca capacidade de enxergar a realidade”. Já o general Carlos Santos, qualificado como “bosta engomada” e “bandidinho”, retrucou apenas com um bem educado “desocupado esquizofrênico”. O vice-presidente, general Mourão, também alvo de bugiaria, limitou-se a dizer que o Bonzo de Virgínia é “astrólogo”.

A bugiaria cresceu muito e o Presidente Jair interveio na briga. A primeira providência foi assinar um decreto transformando o Bonzo em Comendador. Nas entrelinhas do discurso piscou para os generais:

– “É melhor já ir se acostumando com o Olavo”. Para que não ficasse dúvida sobre o lado em que está, Jair comendou os filhos Carlos e Eduardo.

Dizer que a situação está ficando complicada é pouco. Ela pode complicar mais. Afinal, o namoro entre Jair e Olavo não é de agora, vem de muito antes da campanha. Os ataques de Olavo ao exército brasileiro também são antigos.

Vamos por partes. Com relação ao namoro, Olavo defende Bolsonaro faz uns oito anos. Há textos dele em apoio a Bolsonaro, desde 2011, no mínimo, para quem quiser ler. É amizade antiga. Já com os generais, a conversa é outra, pois Bolsonaro não era mais visto na caserna como alguém de dentro.

Com relação às críticas: as críticas de Olavo ao exército brasileiro datam do começo do século, pouco depois de sua conversão. Como ele diz em um de seus livros, até os anos 1960 ele era de esquerda e “odiava e combatia o regime militar”. Isso não o impedia de negar as “realizações mais óbvias” da ditadura. Esse ponto merece um livro que alguém deveria escrever para que a gente entendesse melhor a quadra que vivemos. Depois da conversão, sempre que pode ele acusa o exército de ter sido brando e conivente com a esquerdização do país. Assim, as atuais críticas de Olavo ao exército apenas reforçam um tema que sempre esteve presente em suas crônicas.

Dito isso, se a situação está tensa, acho que vai ficar mais ainda. Olavo é namoro antigo de Bolsonaro e deu casamento. Ontem, depois de toda a bugiaria, Jair disse que sua vitória eleitoral tem o dedo do Olavo, que o Bonzo é um “ícone”, que o “admira”. Se os generais não se acostumarem com isso, é possível que pensem em já ir fazendo as malas.

ZH no Recanto

Isso non ecziste!”

A Zero Hora do final de semana (4 e 5 de maio) trouxe uma reportagem sobre o Recanto Maestro, assinada por Itamar Melo. Li com o maior cuidado, pois tenho alguma noção do tema do Recanto e acompanho o jornalismo do Itamar faz já duas décadas.

Já me ocupei com esse tema do recanto, aqui no blogue, em 2010, pelo menos duas vezes.

Achei muito boa a matéria. Muita gente foi ouvida, muito material foi lido, e acho que houve bom destaque para o impacto positivo dos projetos do Recanto na região. Para mim a grande novidade foi o “desmentido da Universidade Russa”; não há, informa a fonte de Itamar na Universidade Estatal de São Peterburgo, o respaldo científico tão valorizado pela AMF. Os russos, ao contrário, considerariam a ontopsicologia uma coisa “cientificamente insensata” (ZH, Caderno DOC, p. 14).

Esse tema do respaldo da ontopsicologia por universidades já reconhecidas é antigo para mim. O grupo do Recanto fez, em 2008, uma proposta de acordo de cooperação com a UFSM. Quando o assunto tramitou no Conselho Universitário escrevi uma carta para o Reitor, que foi lida na sessão que tratou do assunto, no dia 27 de junho de 2008. O Processo tinha o número 139/07, “no qual a Faculdade Antonio Meneghetti solicita formalização de um protocolo de cooperação entre a UFSM e a Faculdade Antonio Meneghetti.” Entre outras coisas (minha carta está na ata da reunião) escrevi que os livros de autoria do Sr. Meneghetti tinham sido publicado por editoras de seu próprio grupo; seus artigos “científicos” não constavam dos mecanismos internacionais de indexação, ou seja, de revistas que estão na base de dados da produção acadêmica aceita para pontuação na UFSM. Lembrei também que a ontopsicologia não era uma prática terapêutica aceita pelo Conselhos de Psicologia, e as orientações da dita faculdade que queria o acordo baseavam-se na proposta ciência. Foi por aí. No final das contas o relator do processo foi contrário ao acordo e a maioria dos conselheiros foi contra a cooperação entre UFSM-AMF.

Com a matéria da ZH a legitimação via São Petesburgo cai por terra. Eu me pergunto se eles precisam mesmo disso? Conheço algumas pessoas que estudam lá, especialmente no Direito e na Administração. Elas parecem bem satisfeitas com a qualidade dos cursos. E parece bem reconhecer o impacto positivo dos projetos educacionais e culturais do Recanto. Só que tudo indica que o Recanto e a ontopsicologia andam de mãos dadas.

Mas o que pensar disso, um Bacharelado em Ontopsicologia! Como diria o Padre Quevedo isso non ecziste!

Lembrei do Padre Quevedo, um jesuíta católico, porque se o MEC reconhecer um Bacharelado em Ontopsicologia, se o MEC conceder ao Recanto o aval para uma “nova ciência”, o Ministro da Educação entra em conflito direto com a linha de pensamento do Olavo de Carvalho. Simples assim, é só somar dois mais dois. Se eu estou lendo a obra do Olavão direito, nem bebendo ele engole uma ontopsicologia! Ele terá de lembrar ao Weintraub que “isso non ecziste!”

Sobre contos da Baixada Melancólica

Pensando no convite do Candinho e do Vitor, venci a inércia e as dores da fascite plantar e saí caminhando, no rumo da Feira do Livro, para o lançamento do Baixada Melancólica – Contos da Depressão Central.

Na metade da subida da Floriano aconteceu um fato trival, mas extraordinário, como diria Chesterton. Ao encontrar uma pessoa que conheço faz muitos anos, por meio dela tive um encontro com Onofre Ilha Dorneles.

Para quem não sabe, Onofre Ilha Dorneles nasceu perto daqui, em São Pedro, da Celina e do Vicente, e deu de ganhar a vida como ferroviário em Santa Maria. Morava no Itararé, na metade da Marechal Deodoro. Levava a vida com Dona Marieta e dois filhos, bem sucedido funcionário da Viação Férrea. Onofre era um tipo franzino, porém cativante e logo chegou ao sindicalismo ferroviário. Quando viu, era figura importante da União dos Ferroviários. Para brizolar foi um pulo. Era assim no começo dos sessenta. Quando os ventos da redentora sopraram o brizolismo lhe custou caro. No dia nove de abril o Diário da União tirou dele os direitos políticos. Dali em diante o sono de Onofre foi um tucotuco só. As fotos que ele tinha tirado com o Jango foram parar no desvão do sofá, que foi revirado pelos soldados e assim Onofre foi parar no Sétimo Quartel, suspeito de Grupo de Onze. E do Sétimo foi para o Belog e dali para o o Hagageú, com dores ativas e passivas. E assim foi desde abril de 64 até o fim de um ano que nunca termina.

No dia 28 de Dezembro de 1964, aos 46 anos de idade, diabético, infartado, molestado, Onofre morreu na Santa Casa de Saúde. O Natal de Onofre foi em liberdade, mas ele havia sido machucado além da conta e não resistiu. Seu cortejo começou na rua Deodoro do bairro Itararé e arrastou-se pela cidade, rumo, longo caminho, ao cemitério municipal. O caixão foi levado numa caminhonete que mal girava a roda, pois o cortejo era a pé. Os amigos subiram a Rio Branco e desceram a Venâncio no rumo do cemitério. Quando Onofre passou na frente do Sétimo, no fim da tarde, acontecia a troca de guarda. Com o movimento de armas o cortejo parou. O caixão de Onofre ficou, por alguns momentos, pousado na pedra batida da avenida, fez-se um minuto de silêncio. A guarda foi trocada e Onofre seguiu para o cemitério municipal de Santa Maria, ali na baixada melancólica.

Queridos Candinho, Rangel, Francisco, Tex, Orlando, Raul, Lipoold, Vitor Biasoli. Obrigado, por esses Contos da Depressão Central. Eles me falam de Santa Maria, mas por vias tortas, me apresentaram, na subida da Floriano Peixoto, na voz de uma velha conhecida, o Onofre Ilha Dorneles. Antes que vocês me digam que isso é muito surreal, eu quero dizer que sim, mas o que seria da vida sem essas coisas que parecem transcendê-la? No final das contas, fiquei pensando, foi mais um passo, quem sabe, para aprender que a vida comum é assim, muito extraordinária. É a distração da gente, na imensa maioria das vezes, quem não nos permite ver isso. Ainda bem que hoje, ao procurar o autógrafo de vocês, tive um vislumbre disso, mesmo que torto, mesmo que falível que me ajuda a continuar atento. Muito obrigado! Sei que não falei do livro, sei que não falei de nenhum conto em particular, mas para que serve mesmo a literatura senão para detonar mais e mais pensamentos que nos façam ir além de nossa calçada?

Sansa Stark e as lealdades divididas

No último episódio do Game of Thrones, diante de uma eminente derrota, Sansa Stark diz para Tyrion: “É a coisa mais heróica que podemos fazer: encarar a verdade”. Em um episódio anterior, em uma conversa com Shea, ela fez outra observação sobre dizer a verdade: “é uma coisa terrível ou é uma coisa sem graça.”

Na conversa com Tyrion ela relembra o casamento fracassado e a impossibilidade de um genuíno encontro de almas. Isso não era possível, diz ela, por causa das “lealdades divididas” de Tyrion.

Lembrei de Sansa porque vez ou outra sou obrigado a pensar em alguns aspectos da situação atual e isso é terrível para mim, pois me obriga a pensar sobre as minhas lealdades. Ontem, ao que parece, saiu nova conversa sobre o patronato educacional brasileiro: o atual governo estaria disposto a mandar para o Congresso um projeto de lei nomeando outra pessoa para a vaga de Patrono da Educação. Vi isso em um Instagram da Folha de S. Paulo.

O tema, como diria Sansa Stark, é terrível. E aí vem a outra fala dela, o que podemos fazer: tentar, ao menos, encarar a verdade ou dividir nossa lealdade, como se ela fosse um pedaço de pão? Encarar a verdade, nesse caso, é terrível, porque implicaria em lembrar, por exemplo, que o custo do patronato, em abril de 2012, foi zero. O projeto foi aprovado por acordo de lideranças, sem ânimos contrários. Como explicar que seis anos temos esse clima? Encarar a verdade é terrível, nesse caso, porque ela parece ser mercadoria em baixa. O governo diz que vai atacar certos cursos, por darem pouco retorno. Esse mantra é antigo. Ocorre que o Patrono disse, em uma entrevista de 1972, o seguinte:

“Agora, o que não é viável é que se pretenda realizar investigações que não tenham nada a ver com a realidade imediata, que não tenham nada a ver com os interesses mais concretos do país. Eu não saberia agora dar um exemplo no campo da Pedagogia mas darei um exemplo no campo da Biologia. Aconteceu no Brasil, na Universidade onde fui professor há 15 anos. Um professor da Faculdade de Medicina do Recife propôs-se a investigar, no campo da fisiologia, porque o animal chamado ‘bicho-preguiça’ passa 10 anos dormindo. Ele queria estudar as glândulas endócrinas para detectar sua preguiça. Um professor de Harvard poderia fazer isso, ainda que o chamassem de louco, mas no nordeste do Brasil onde a expectativa de vida da população é de 27 anos, não é possível que haja um professor que se proponha tal investigação.”

Não apenas está aí o tema do desinvestimento mas também a discriminação do Nordeste. Os sinais são trocados, você dirá. Mas tem sido assim: essa coisa de filmar professores, por exemplo, é maoísmo!

Não sei aonde nos levará uma lealdade dividida entre, digamos, esse meio olho fechado para nossa própria história e a prioridade de uma resistência contra o “atraso” e o “fascismo”. É o Jogo dos Cachaceiros e dos Malucos? Como disse o Slavov Zizek no final do debate com Peterson, na semana passada: “eu espero sinceramente que tenhamos feito com que algumas pessoas pensem em rejeitar as oposições simples. Se você é um esquerdista, não se preocupe em ser politicamente correto, não tenha medo de pensar. Chamar os outros de fascista é preguiça, you make it all to easy to play these games.”

Como diria Sansa Stark, a gente não deveria conversar fiado na hora da morte. Sim, eu acho que ela vai ocupar o trono de ferro. A linha do roteiro aponta para o fim daqueles que tem parte com o mundo sobrenatural, o que inclui não apenas Jon e Dayneris, mas também o vidente. Não faz sentido, no mundo humano, em Westeros ou no Brasil, pensar que alguém é capaz de ver o futuro.